Vida Ardida

Autor: Jairo Ferreira Machado

Ardida é essa vida

Vinha num andar espandongado, desaprumado, grandalhão, tão negro que reluzia, precisando corrigir o rumo a cada passo, os pés arrancando os capins das beiras dos trilhos, trazia nas costas a enxada jacaré que longe a luz do entardecer a alumiava, o chapéu de palha enterrado na cabeça, no bolso de traz da calça o isqueiro que somente ele possuía, armado numa lata de lança-perfume – lembrar que a lança-perfume não vinha em frascos de vidro, e era maior que as de hoje – então, ele reutilizava o invólucro para caber mais querosene e alongar a chama do pavio, o cigarro feito de fumo de rolo, úmido, que ele picava no curvo da mão, enrolava e o acendia, mas o excomungado do pito apagava, ele acendia novamente, tirava uma talagada, a fumaça e o cheiro forte de fumo de rolo ia ficando pelo caminho, espantando as mutucas, vinha da lida daquele dia, e de todos os dias, a roupa e a cara respingadas de barro, o andar espandongado, a barriga vazia, parava para um tico de conversa com o patrão, sobre o roçado, sobre o brejo, quantos eitos faltavam e se tinha mais empreitada para dar, a faca de ponta enfiada na bainha, vai uma cachaça?, inquiria o patrão, deveras que sim, ele dizia, o patrão ria, ele sorria de volta, agradecido, e virava o copo cheio na garganta, sem tomar fôlego, em seguida entrelaçava as longas pernas no cabo da enxada, mais um tico de conversa, o cigarro já tinha apagado, enfiou a binga no bolso, os olhos crispados em fogo sobressaindo-lhe da sombria negritude, a cara respingada de barro, as pernas da calça arregaçadas, então até amanhã… compadre, essa aí é da boa, ardida, o calor subindo suas entranhas, o seu cérebro, rumou a enxada nas costas e se foi, mais espandongado que antes, as pernas bambas adivinhando as trilhas que ia dar num casebre de pau-a-pique lá nos cafundós, pensava no angu, se tivesse algum pra comer, é claro, senão era largar o corpo no chão, no colchão, ao lado da mulher, essa já embarrigada novamente, as crianças amontoadas na cama, feitos leitõezinhos no chiqueiro, esfarrapados, esquálidos, os pés cheios de bicho, coçavam, coçavam, o caçula vinha mamar, a mãe condescendia-lhe os peitos moles escapulindo sobre o vê da blusa rasgada, amamentava, sorria, sabe-se lá com o que sonhava, talvez com ele acariciando seus peitos, mas o marido dormia, arguindo-se, quem sabe amanhã eu acabo o eito, o patrão vai pagar, vou comprar fubá, farinha, feijão, foice, lima, uma rapadura pros meninos, uma escumadeira pra mulher, esse mundo é assim, a penúria, a dor de dente, e já outro dia, o café amargo, o açúcar tinha acabado, a mulher em pé à beira do fogão de lenha, vai dar fim ao eito hoje, Zé?… quem sabe… ele respondia, a lamparina acesa, uma trempe, uma panela no fogo, uma tigela sobre a mesa, esperando, uma raspa de qualquer coisa, de coisa qualquer, o coité vazio, logo, logo os meninos acordam com fome, a barriga roncando, choramingando a fome: mamãe, mamãe… Ela já tinha cozinhado algum inhame.
Ele já tinha ido pro roçado, o andar espandongado, levando o caldeirão de comida: angu, pimenta malagueta para dar o gosto, ardido, e mais angu… E o sol ainda nem tinha nascido.