Chuva Íntima

Autor: Lígia Maria Knabben Becker

Despencava de dentro daquela mulher toda a sua cota de paciência: aquilo tudo que lhe mostrava a porta para a descida aos infernos da maiúscula tristeza, da desconfiança, da ingratidão, da amargura, não mais lhe pertenceria.

Onde estariam seus desejos? Submersos?

Raios e trovões couriscavam na sua alma e uma enxurrada de pensamentos desaguava para fora dela junto ao sal escorrido dos olhos e logo aparados na boca de fala muda, afogando-a.

Empurrava para fora o caos causador daquela tormenta despedaçadora na região mais abissal do seu ser em parto dorido e silencioso entre panos molhados da água e do seu sangue nutridor, que agora virava em transformação, frágil, sem deixar de ser vibrante. Mistura de sensações, suores, sonhos, sentimentos…

Silêncio. Do caos à transformação. Respirava o novo.

A capa de aço a lhe cobrir a vontade dissolvia-se, finalmente. Quantas vezes se permitiu endurecer para evitar o sofrimento quando as ondas de dor se agigantavam e a engoliam, sem perceber que submergiam também os afetos e a ternura, ai que dor!

Nem conseguia mais chorar, lavar a alma virada de costas para os seus sonhos.

Pura resistência e intolerância às experiências conflitantes sem o entendimento que elas poderiam ser o grão de areia a se transformar em pérola dentro da ostra machucada.

Quantas mulheres como eu amordaçam seus objetivos de vida, questionava-se? Colocam-nos pequeninos em nós circunscritos (casa, trabalho, filhos, companheiro, etc.) e quando estes se desfazem, rompem-se também a alegria e o encantamento do viver. Essa visão reducionista do processo que a vida é pode murchar qualquer vontade que atrelar seus momentos de felicidade à alguém, às coisas que nos cercam em vez de cuidar de nós mesmas, pensava ela.

Grande coisa dizer “vou ser assim até morrer” sem um mergulho de vez em quando nas águas profundas do nosso interior sem nos perguntar quais as pedras pontiagudas que poderão ser jogadas rio abaixo para serem polidas e tornarem-se seixos harmoniosos.

Seu maior infortúnio era sentir engessado o seu lado doce, florido, sem o cultivo e as regas necessárias para o desabrochar de uma mulher completa com fé na vida, no outro e em si mesma.

Ela desejava escolher conviver com quem a acrescentasse e a enriquecesse com as pequenas joias da atenção, do respeito, do bom humor, do companheirismo, dos pingos caudalosos do carinho. Seria assim que superaria as marolas e os tsunamis do viver.

Mas a completude do seu ser seria consigo mesma, não sabia porque, agora, depois de toda a chuvarada, sentia-se parte do Todo, esquisita essa ideia que lhe banhava todas as células naquele momento de aconchego. A certeza de estar humana e toda a água que continha no seu corpo era o suficiente para sentir-se uma gota. De ser uma gota.

E uma gota, com certeza, faz parte do oceano.