Caminhada em Garopaba

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Garopaba: “terra das canoas” ou “enseada das canoas”

Ana Lúcia Coutinho

Quanta história para contar, trocar e receber! Assim se comporta a minha expectativa e acredito, também, as dos meus colegas caminhantes em relação à trilha a ser percorrida na chamada “terra das canoas” ou “enseada das canoas”, denominada pelos primeiros povos da terra, os tupis guaranis. Um dia essa gente sem pretensão, observou a sua geografia e atribui a ela o nome Garopaba.

Terra de cantos e encantos, de praias de mar grosso e mar manso, areia fina e grossa, rios e lagoas e de picos revestidos pela diversidade apresentada pela Mata Atlântica. Sua gente num passado aparentemente distante presenciou o ranger das âncoras sobre as águas cristalinas dos galeões e das galés fundeados na busca de abrigo das frequentes tempestades. Muitas das quais, tenebrosas, forçando seus comandantes a parada obrigatória, antes de rumar ao destino desejado. Respeitar os fortes ventos, o sul e o nordeste era uma tomada de decisão prudente e acertada dos navegadores e aventureiros.

Nas histórias contadas em prosa e versos do cotidiano popular a respeito de situações vivenciadas pela marinharia internacional, no século XVI, as narrativas são comprovadas por sua historiografia. Uma passagem interessante a respeito das atitudes e manobras na enseada vincula o dia 24 de junho de 1525, quando comandante espanhol Dom Rodrigo de Acuña, do galeão San Gabriel, decide aportar na enseada da Garopaba, após se defrontar com a chegada de uma tempestade. Ao presenciar a situação resolve não arriscar a embarcação e a sua tripulação que havia partido de la Corunã, Espanha, com destino ao estreito de Fernandes de Magalhães. A respeito do ocorrido, provavelmente, este não tenha sido o único exemplo de tal situação. Outros com certeza compõem a história da navegação nesta parte do Brasil Meridional, por ser uma rota desejável dos marinheiros a descobertas de novas terras. Nas dificuldades causadas pelas intempéries recorrem sem pudor ao abrigo da enseada de Garopaba. Nas atitudes reforçam a importância de ser da enseada o local propício para a proteção natural das embarcações.

Terra recheada de cantos e encantos revela não só o olhar para o mar. Seus caminhos antigos, marcados pelas idas e vindas dos nativos e por aqueles que escolheram a terra para viver, não se constitui apenas pela paisagem exuberante de suas matas ou pelos arranjos urbanos do século XXI, moldurada pelos cuidados com os jardins de flores “nativas”. Seus espaços são rendilhados por longas faixas de areia branca, águas límpidas, muitas vezes quentinha e outras tão gelada que intimidam o visitante a banhar-se. Na caminhada sobe-se morro e desce-se morro, caminha-se até se deparar com o paredão de dunas brancas prontas para receber curiosos e os adeptos de esporte sobre a areia.

Costear a lagoa de Macacu e seu em torno marcado por características agropecuárias faz parte do roteiro que o nosso grupo estava a caminhar. Sobre um sol forte e com uma boa conversa ao lado, de vez em quando, nos deparamos com agricultores conduzindo os seus carros de boi na volta do trabalho. Outras, o carro de boi encontra-se bem arrumadinho na frente de suas casas, carregadinho de cana de açúcar, enfeitando o ambiente doméstico. Nesta observação, pode-se deduzir que essas famílias são orgulhosas da sua identidade cultural e por isso as conservam.

Macacu terra dos engenhos de farinha e de belas pastagens, de homens e mulheres que cantam e brincam o boi de mamão, os ternos de reis e de natal, do fazer das esteiras de taboa e das cestarias, dos saberes voltados para arte de comandar o tear, das benzedeiras que curam os males da comunidade e as mulheres que possuem o saber de tecer o fio de tucum para fazer redes e tarrafas. Da produção de farinha de mandioca, do melado, do bijú e da bijajica, das roscas de massa e de polvilho que alimenta seus filhos, o café sombreado coado no saco de pano ou cabeludo… Quanto saber acumulado no imaginário desses grupos sociais que, muitas vezes, passa despercebido dos seus visitantes, por não estar cem por cento visível.

Percorrer o caminho antigo de chão batido agora com nova roupagem, lajotado e asfaltado chega-se a praia do Siriú, local de rara beleza e bucólica e, ao mesmo tempo, conserva no seu costão o ponto de observação das baleias e leva para as suas ondas pessoas nativas para a prática do surfe. Mais um dia dedicado a caminhada, domingo, agora para finalizar, mais 14 km saído do costão do Siriú, para se atingir a praia da Gamboa. Sol forte e lá vamos nós, após o encontro de todos na roda, para o alongamento e agradecimento.

Após alguns minutos de caminhada o morro aparece e aí começa-se uma bela subida, passando-se por jardins com tarrafas penduradas sobre árvores na frente das residências. As mesmas em processo de produção estão expostas demonstrando que ali reside um mestre do saber que sabe manipular a agulha de madeira e a linha de tucum, hoje substituída pelo nylon. Nesse trajeto outras manifestações da arte popular podem ser presenciadas. Na beira da estrada uma instalação com pedaços de cerâmicas e lâminas de latas coloridas anuncia que próximo dali existe arte a venda em plena comunidade rural e mais à frente, outra placa, esculpida num pedaço de madeira rústica, aponta mais um espaço de venda de artesanato, riqueza da sabedoria acumulada, indicando que a terra possui artesãos e artistas.

Assim se compõe o caminho ou caminhos desse trecho de Garopaba a praia da Gamboa, totalizando 36 km. A Gamboa, local de pescadores, dedicados num passado não distante a vigia da caça a baleia é apresentada em versos pelos mais velhos.

Já na Gamboa, durante o almoço do grupo, proseava com o seu Manoel José Pereira, de 66 anos, conhecido por seu Nelinho, de sorriso fácil se orgulha de dizer que o lugar é terra apenas de duas famílias nativas que enfrentaram a solidão do lugar, distante da sede da freguesia, quando do surgimento da comunidade. São os Pereiras e os Correias. Na sua memória ainda está viva a relação dos homens com o trabalho baleeiro, motivo de orgulho ao domínio a um mamífero tão grande. Era costume de sua gente narrar o trabalho em versos: “Domingo de manhazinha/Me levantei bem cedinho/ passei a mão na buleia/ E botei no meu balainho. Na chegada da praia/ Eu fui encontrando areia/ O nordeste estava duro/ E logo me resfriou a orelha. Olhei para a quebra do mar/ E logo avistei a baleia/Nisso eu voltei para o Francolino/E disse vai logo avisar o teu pai. Na confusão avistei/ a filha do cachalote/ brincando na crista da onda/ Chamei pelo menino/ de nome de Sidinei/ Me chama o Antônio/ E lhe diga venha aqui. O menino perguntou para o outro. O que meu pai quer? Ele precisa de ti/ Se eu mandei te chamar/ É para Garopaba ir. Na casa do João Dionísio? No caso que queira vir/ Se o João Dionísio não vir/ Tu me vai na casa do Lício/ Se nós aproar a baleeia/ Temos um mês de serviço”.

Diante da narrativa do seu Nelinho encerro as minhas observações, parabenizando a organização diretiva da Associação Catarinense dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela por mais um feliz encontro de final de semana. Momentos compartilhados e desfrutados por velhos e novos amigos.

Ao final do dia, penso cá com os meus botões, nossos encontros peregrinos ou de caminhantes como preferirem, proporcionam a cada encontro momentos de vivências significativas e de renovação das forças interiores que somam ao nosso cotidiano individual ou coletivo permitindo-nos a momentos de felicidade de conversas de múltiplos assuntos que só contribuem para que fiquemos mais ricos.


Fotos: Luiz Fernando Barazzutti


Fotos: Maria Pesavento Pereira


Fotos: Catarina Maria Rüdiger

Detalhes do Evento