Afrodite

Autor: Lígia Maria Knabben Becker

Ela havia conhecido o inferno. Aquele formado dentro do seu pensamento, com sua vontade e criação. Não aquele fogo eterno das religiões, já não tão dominantes.

Porque havia dado esse nome ao turbilhão de emoções sentidas até agora? Fornalha ardente e dorida poderia não abarcar aquilo tudo. O caos. A dor. E o sofrimento. Então, o inferno.

Agora, voltava sua intenção a outro foco e logo sua atenção peregrinou para outra paisagem na sua mente.

A casinha pintada em tons de azul contrastava com o verde enrolado das trepadeiras do seu pequeno jardim, um dos seus mais preciosos bens. O cheiro bom do jasmim criava asas principalmente à noite, atravessava a janela azul-escuro do seu quarto e enchia sua alma de alento e paz fazendo-lhe companhia. As damas-da-noite com seu perfume inebriante e intenso despencados nas suas inflorescências brancas, também. Ao seu lado, um pé de mirra disputava sua vez de apresentar cedinho seu aroma, à hora em que ela despertasse para mais um dia. Os olhinhos dos amores-perfeitos a encaravam ternamente a lembrar que o tão falado amor existia, nem que fosse apenas em flor. Pedia-lhes permissão para às vezes, saboreá-los, em comunhão do seu ser com o desejo de completude, mesmo sendo apenas com as criaturinhas do vegetal reino.

Antúrios explodiam suas cores vibrantes e sem pudor algum exibiam seu pendão em riste feito amante superapaixonado em contraste às alvas e recatadas camélias, cobertas de orvalho acomodadas entre sussurrantes cabinhos e folhas enceradas.

O cheiro da grama cortada cruzava suas narinas feito flechas de prazer ímpar: grama tem cheiro bom de grama e pronto. Sem comparação.

Borboletas descansavam seus voos de pluma no pouso das pesadas, irisadas asas, quando a luz ao penetrar nos alvéolos cheios de ar das suas escamas, produziriam pela decomposição do espectro luminoso, tonalidades azul-turquesa, acetinado. Dera o nome de Afrodite àquela borboleta mais descolorida que, silenciosa, ainda de cor ocre, lhe visitava as flores e bebia seu néctar, sem luz suficiente nas asas.

Voejava lado a lado com o nervoso beija-flor e seu barulhento estalido de língua, canto para atrair a parceira. Tli-tli, tli.

Entre voos de marcha-ré e perseguições ziguezagueantes os beija-flores fazem as núpcias aladas.

Afrodite, como se comungasse a força da vida em processo de renovação dos esvoaçantes serezinhos, se enche de luz ao pousar a minha janela. Ao sol, suas asas tornam-se azuis.

Que idioma seria aquele que se permitia dialogar sem palavras? A linguagem universal do coração, disse-me, calada.

Como? Solidão acompanhada é bom?

Escrever nas estrelas pode?

Desvelar os segredos guardados dentro da alma da gente adianta?

Querer-me a mim, pode também?

Olhar pra dentro de si e espiar fragilidades?

Virar as costas para tudo aquilo que não vale a pena não é desistir?

Serenidade, silêncio, sono, sabor, sexo, sorriso. Azul.

Como Afrodite, minha alma celebrava a transformação…..