Águas Peregrinas – Livro

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Águas Peregrinas

Inácio Stoffel

inaciostoffel@gmail.com

 

 

 

 

 

 

A meus pais

Jabob e

Therenia,

com gratidão e afeto.

 

 

 

 

 

 

 

 

Apresentação

 

Como tem repetido Joseph Campbell, professor norte-americano de mitologia, não importa quão avançada esteja a tecnologia, os mitos primevos, os quais C.G. Jung genialmente catalogou como arquétipos,  devem ser revividos em cada ser humano e conscientemente vivenciados para que a potenciação individual seja alcançada.

Desses mitos, para os humanos são essenciais as experiências da Fênix, a se imolar em chamas e delas reviver purificada; a da serpente que se estrebucha deixando para trás a pele antiga que o decorrer do tempo tornou apertada demais e, para os homens da espécie, passar pelas etapas de Édipo, o que precisa matar o pai, mesmo que simbolicamente, para que, também simbolicamente, suplante o protetor amor materno pelo da mulher companheira.

Nenhuma potenciação é um passeio idílico. Todas são caminhadas duras e dolorosas, pois são um entrar na caverna secreta do inconsciente pessoal: nela, arrancar pedaços do passado, confrontar-se com os horrores, medos e angústias que eles traduzem e voltar para a luz, mais inteiro e mais plenificado.

No seu “Águas Peregrinas”, Inácio Stoffel teve a fortaleza de percorrer dois caminhos íngremes e agrestes ao mesmo tempo. O terreno, que leva a Santiago de Compostela, no qual o corpo é machucado e o da caminhada interior, em que o espírito é que é estraçalhado, olhado cara a cara, mortificado e, por fim, ressurgido. É o mito ancião do herói que sofre e morre para que outros vivam e se alegrem. Incólume passou por tudo: desde a criança que foi ele e que se negava a morrer até a fugacidade do sexo que insistia em apenas fulgurar.

Este seu livro não relata romarias romanescas, cheias de rituais pseudoconsoladores. Acompanhamos a coragem mítica de quem, como na “Ode à alegria” de Schiller, “avança certo da vitória”.

Olhou-se, juntou os cacos que uma vida até então havia quebrado, juntou-os e, artífice da ânfora perfeita, poderá dessedentar muitos outros com as águas limpas nascidas de sua fonte interior.  Água. Água, o elemento essencial a todos os mitos da ressurreição pessoal, o acompanha na viagem interior, ora em chuvas diluvianas ora em cânticos de rios murmurantes.

“Ecce homo”, Eis um homem inteiro! Exultemos ao distinguir as velas pandas desse Ulisses, que, agora integralizado, volta para sua Ítaca, sobre as águas, enfim pacificadas.

Júlio de Queiroz

Academia Catarinense de Letras

 

 

1

 

O Caminho serpenteia por entre cidades e vilas, montanhas, campos e matas, tal qual o leito de um rio, por onde correm as águas peregrinas. Assim, todos os dias, ao longo de todo o percurso e a um só tempo os peregrinos derramam-se neste leito, escorrendo pelas estreitas vielas dos povoados ou pelas largas avenidas das cidades para desaguar continuamente em sua foz: Santiago de Compostela.

Passei a fazer parte deste rio em Saint-Jean-Pied-de-Port, França, já próximo da fronteira com a Espanha, no início de outono ainda  recente. Antes do raiar do dia, eu e outros peregrinos, a sós ou em pequenos grupos, iniciamos nossa descida em direção ao Portal d’España como se este fosse uma comporta a abrir-se diante das ondas peregrinas que, a partir dali, engrossariam o caudaloso Caminho-rio.

Por que eu estava ali?, perguntei-me mais uma vez, enquanto já começava a subir a estrada de acesso aos Pirineus. Mais uma vez a mesma resposta confirmou-se. Num certo momento da vida, percebi que eu fora construído de acordo com um projeto que teve a participação de muitos, porém do qual eu próprio pouco participara. Consciente disso, andei desde há muitos anos por muitos caminhos em busca de definição e de desenvolvimento de um projeto de reconstrução em que eu fosse o principal agente. Sempre atento para não enredar-me novamente em projetos de outros, numa primeira etapa passei a desconstruir-me, eliminando tudo aquilo que não era meuem mim. Ea demolição ainda não terminou. No entanto, meu projeto de reconstrução está em andamento, embora ainda — felizmente — não de todo definido.

Em busca de novos caminhos de reflexão, levei tempo maturando trilhar o Caminho de Santiago de Compostela. Antes de ter um objetivo bem estabelecido fui eliminando outros, que não traziam resposta às minhas reflexões. Não quis percorrê-lo porque é considerado um belo roteiro turístico, por uns; uma maratona, por outros; um caminho sagrado, por terceiros; uma iniciação à Nova Era, por outros ainda. Eu não tinha promessas a pagar nem graças a pedir. Tampouco quis vê-lo como mais uma conquista, digna de admiração. Só o trilhei quando – deixando de lado quaisquer expectativas convencionais -, entendi o Caminho como uma metáfora de meu próprio caminho interior, o que, sem ser um objetivo, é, sem dúvida, um conceito persuasivo e mobilizador.

 

E ali estava eu em minha inexperiência, procurando manter contato com os peregrinos que iam à frente, mas já preocupado em treinar o olhar para reconhecer os sinais e convenções que indicam o Caminho, quando um casal perguntou-me de onde vinha e meu nome. Apresentei-me. Ele, José Maria, e ela, Beatriz, espanhóis, apresentaram-se, também.

Jogamos conversa fora, enquanto nos sondávamos em busca de interesses comuns. Também eles iam pernoitar em Roncesvalles e estavam iniciando a peregrinação por etapas, aproveitando fins-de-semana e feriados para avançar pelo Caminho. Ao longo do trajeto, trocamos informações sobre história e cultura de nossos países. Beatriz, de quando em quando, cantava canções do folclore espanhol, às vezes acompanhada de José Maria. A companhia de ambos e de outros que por nós passavam ou juntavam-se a nós por alguns instantes, tornou a caminhada pelos Pirineus mais agradável e menos desgastante. A paisagem não me encantou, embora fosse possível ver ao longe. O alto das montanhas é inóspito; há poucos sinais de vida, sejam casas, animais ou carros; as matas são escassas e a vegetação rasteira é insossa.

Mas, se faltava vida à montanha, não faltava vida a Maria Luisa, uma das peregrinas que passou por nós. Ela usava uma calça vermelha leve e solta, uma jaqueta de malha marrom com capuz, calçava tênis da moda, tinha uma pequena mochila adolescente pendurada às costas e uma sombrinha vermelha que balançava como uma bengala de comédia. Faceira, feliz, de bem com o mundo, seu olhar otimista dirigia-se a todas as direções, espalhando alegria e bom humor, ciente de ser o centro das atenções.

 

Logo eu estaria acostumado à diversidade de nacionalidades, idiomas, indumentárias, comportamentos e hábitos do sem-número de peregrinos com os quais iria conviver. Mas, naquele momento, em que já estávamos próximos a Roncesvalles, todos eles pareciam-me menos reais como pessoas do que como personagens de um espetáculo do qual eu mesmo participava.

 

Chegar a Roncesvalles, descendo por uma íngreme trilha em meio à mata, após pouco mais de seis horas de caminhada, trouxe-me conforto e confiança para as etapas seguintes. Eu estava cansado e doído, mas sentia-me bem-humorado e satisfeito. Tendo-me registrado e carimbado a credencial de peregrino, fui alojar-me no albergue, um amplo pavilhão-dormitório com sessenta beliches. Senti que meus dias de privacidade e conforto haviam-se acabado. Este era o preço a pagar por estar sendo integrado à vida peregrina.

À noite, todos, crentes e descrentes, fomos convidados a assistir ao ritual da bênção aos peregrinos, no antigo templo gótico de belos vitrais e de clima propício à cerimônia. O padre celebrante relembrou a história de São Tiago Maior, apóstolo de Jesus e irmão de São João Evangelista, que pregou sua fé em terras de Espanha, ainda no alvorecer do cristianismo. Seus restos mortais foram encontrados no ano de 813 por um eremita guiado por uma milagrosa chuva de estrelas sobre o local em que estavam enterrados. O local veio a ser conhecido por Santiago de Compostela (campo de estrelas), que desde então tornou-se destino de milhões de peregrinos e um dos três principais caminhos sagrados do catolicismo, sendo os outros dois Roma e Jerusalém. Ao final, reunidos em frente ao altar, recebemos a benção como uma espécie de iniciação coletiva ao Caminho.

 

 

2

 

Quando deixamos o albergue no dia seguinte, ainda estava escuro e saímos à luz de lanterna. A cautela era um peso adicional que levávamos. Uma peregrina, tão inexperiente quanto nós, parou à nossa frente, em dúvida quanto ao caminho a seguir. José Maria dirigiu-lhe a palavra, obtendo como resposta apenas um nervoso agitar de mãos. Perguntei-lhe, em inglês:

“De onde és?”

“Da Alemanha.”

“Seu nome?”

“Gertrud.”

Apresentei-me dizendo ser brasileiro e apresentei o casal amigo. José Maria fez um gesto convidando Gertrud para que nos acompanhasse. Sem dizer nada, ela nos seguia, como que a não nos atrapalhar. Alternando momentos de silêncio e de conversação, procurávamos também dar alguma atenção a Gertrud. Quando ela não conseguia dizer algo em inglês, dizia em alemão, o que me fez recordar algumas palavras e expressões ouvidas na infância. Gertrud mostrava-se satisfeita quando eu conseguia entender seu idioma. De resto, mostrava-se muito retraída. Parecia apenas não querer estar inteiramente só, embora imersa em seu próprio silêncio.

As vilas se sucediam a cada três ou quatro quilômetros. Somente a meio caminho, em Lintzoain, fomos encontrar um bar aberto para tomarmos o café da manhã. Gertrud, tão logo comprou seu lanche, seguiu adiante sozinha. José Maria e Beatriz olharam-se e sorriram, surpresos.

“Impaciente, ela, não?” – Comentou Beatriz.

Não demorou muito e reencontramos Gertrud, novamente perdida. Ela juntou-se a nós e seguimos em agradável conversação, em direção a Zuribi. Ora falávamos de nós, ora do Caminho, ora da paisagem. Mas também incluímos nossas semelhanças e diferenças culturais e suas expressões na dança, música e cinema. Expressões dramáticas, as espanholas e alegres e extrovertidas, as brasileiras.

Eu observava que nestes primeiros dias as relações eram mais presentes que as reflexões. Deixei que pessoas, paisagens e pensamentos fluíssem livremente, sem apor o obstáculo da contrariedade, dando boas-vindas ao que me fosse apresentado viver ao longo do Caminho.

Ao nos aproximarmos de Zubiri, senti meu joelho esquerdo reclamar da acentuada descida. Solidários, José Maria e Beatriz emprestaram-me seus cajados para que eu pudesse apoiar-me, diminuindo o esforço sobre o joelho.

O casal espanhol despediu-se de mim e seguiu até Larrasoaña. Deixei-me ficar em Zubiri pelas condições do albergue e, em particular, porque poderia usar a Internet para comunicar-me com minha família. Enquanto digitava minha mensagem e cumprimentava Gertrud, que também se hospedara ali, um peregrino perguntou-me se eu poderia enviar um e-mail à sua esposa, pois ele não sabia fazer uso do computador.

“Sim, claro!, enquanto termino meu texto, pode redigir o seu.” – Respondi,em inglês. Suamensagem era pequena: apenas dizia que estava bem, que sentia falta da família e despedia-se com amor.

Agradecido, ele insistiu em pagar-me uma cerveja. Assim conheci Tony, canadense, a quem reencontrei várias vezes, com grande satisfação. Aos 69 anos, magro, mais de metro e noventa de altura, Tony tinha um rosto jovial, de menino muito crescido, no qual se estampavam afeto e simpatia. Sua conversação era sempre dirigida a conhecer as pessoas e a dar-se a conhecer.

 

3

 

Sem os amigos espanhóis – José Maria e Beatriz -, iniciei meu terceiro dia andando livremente. Pela primeira e única vez, perdi-me. Ao reencontrar o Caminho, avaliei meu tempo e a distância percorrida e concluí que havia progredido pouco. Decidi disciplinar-me e avancei, então, num bom ritmo, parando apenas quando meus pés ou ombros, ainda não acostumados à caminhada e ao peso da mochila, doíam demais. Nesse novo ritmo, acabei encontrando Gertrud, que se comportava de modo estranho. Pediu-me para ir com ela até o albergue de Larrazoaña. Embora não dissesse claramente o que queria, senti, por sua aflição, que deveria acompanhá-la. O albergue já havia despejado os peregrinos da noite anterior e estava sendo limpo. Ainda assim, fomos bem recebidos pelo hospitaleiro.

Como parecia hesitante, sugeri a Gertrud que me dissesse o que estava acontecendo para, então, eu transmitir ao hospitaleiro. Envergonhada, escondeu-se no umbral da porta e apontou para o baixo ventre, ao mesmo tempo em que dizia em alemão:

Monatsfluss!” (Menstruação!).

“São coisas de mulher, senhor. Minha amiga precisa de absorventes íntimos.” – Eu falei ao hospitaleiro. Foi a vez dele atrapalhar-se.

“Ah, sim! Deve ter algum perdido por aqui.” – Respondeu, perturbado como o pedido. E começou a abrir as portas do balcão aumentando a desordem que havia por trás delas. Não encontrando nada, ele socorreu-se com as mulheres que limpavam o albergue, com as quais conseguiu o que tanto procurava, para alívio de Gertrud.

Agradecemos e seguimos juntos até Pamplona. Mas, ao longo de todo o caminho, Gertrud ficou em silêncio e cabisbaixa.

 

Aos poucos, no convívio com Gertrud e outros peregrinos, percebi que o Caminho é uma espécie de Babel redimida, abençoada por Deus, onde caminhantes de todos os continentes, por diferentes que sejam seus idiomas e credos, acabam por se entender.

Quanto a mim, além do português, meu conhecimento de espanhol e de inglês é suficiente para uma comunicação adequada. O francês jamais aprendi; meu professor era polonês, recém chegado ao Brasil. Embora poliglota, falava mal o português e nosso livro texto em nada o ajudava em seu estranho método de ensino. O alemão, que eu revivia com Gertrud e cujas palavras mais ásperas batiam como martelos às portas da memória, trazia-me à lembrança que também eu havia falado o idioma, em minha infância. Aqui e ali, algumas palavras foram sendo recordadas, como se fossem pegadas fósseis de outras eras. Mas quando eu ouvia falar o italiano, as palavras pareciam-me saltar como pipocas, agitadas por italianas mãos e a evocarem o espectro de nona Carmelita, que eu conhecera havia muitos anos. Poucas vezes eu a ouvira falar o idioma mas quando desandava a xingar, era sempre em italiano, incluindo os palavrões, que hoje são os restos da involuntária herança que ela me deixou.

 

Eu já havia percebido que Gertrud tinha um temperamento difícil e era auto-suficiente ao extremo. Naquela tarde em Pamplona, porém, quando nos reencontramos num dos parques da cidade, ela mostrou-se expansiva e alegre. Como ventava, refugiamos-nos num simpático quiosque, onde desfrutamos de comes e bebes, enquanto conversávamos um pouco sobre nós mesmos e sobre o Caminho.  Foi então que ela me fez sua única confidência:

“Sabe por que eu estou aqui? Eu fugi. Ninguém sabe onde estou, à exceção de um amigo.” – Disse ela, inclinando-se para frente, sobre a mesa. Um pouco do chá derramou-se no pires; num gesto automático, ela devolveu o líquido à xícara – “Eu precisava fugir deles todos para ter um pouco de paz e encontrar-me comigo mesma”. – Acrescentou, agitando as mãos e rindo de sua travessura com um riso subjugado pelo peso da culpa.

Esperei que ela continuasse, mas ela encerrou o assunto e jamais voltou a falar nele. Se isso era tudo o que ela estava disposta a dizer sobre si mesma, por que insistia tanto em querer saber sempre mais a meu respeito? Cauteloso, eu respondia o trivial e contornava as questões sobre as quais julgava conveniente calar. No entanto, lembro de ter dito a ela que após chegar a Santiago de Compostela talvez eu continuasse a peregrinação até Finisterra ou, então, iria a Barcelona, como turista.

 

4

 

Gertrud e eu saímos juntos de Pamplona, a caminho de Puentela Reina. Ao chegarmos ao Alto del Perdón, paramos para que ela vestisse sua blusa de lã. Como não a encontrou, concluiu que a havia perdido durante a caminhada.

“Vou voltar e procurar. Você não precisa esperar por mim.” – Disse ela.

“Talvez você tenha de voltar muito atrás, correndo o risco de não encontrá-la – argumentei. –  Creio que não vale a pena.”

Mas ela já estava descendo a montanha, voltando sobre seus próprios passos. Mesmo dispensado, aguardei por ela, exposto ao mesmo vento frio que movimentava os geradores de energia eólica no alto da montanha.

Por um bom tempo, admirei a paisagem, cujo horizonte – ao longe – era sempre limitado por outras montanhas, algumas ainda envoltas por nevoeiro. Então, sentei-me, ao abrigo do vento, a ler poesias de Mário Quintana: “E se o que tanto buscas só existe/ em tua límpida loucura/ – que importa? -/ isso/ exatamente isso/ é o teu diamante mais puro!”. De quando em quando, eu apreciava o fluxo contínuo de peregrinos, expressão viva das palavras do poeta: “E o meu destino é seguir… é seguir para o Mar,/ as imagens perdendo no caminho…/ Deixa-me fluir, passar, cantar…”

Quando Gertrud voltou ao Alto del Perdón e me viu, agitou  seu casaco como se fosse um troféu e sorriu. Ela mostrava-se feliz como uma criança, não sei se por ter encontrado o casaco ou por ver que eu a esperava. Talvez por ambas as razões.

“É difícil acreditar que você tenha andado cinco quilômetro apenas para recuperar uma blusa.” – comentei.

“Mas, é uma boa blusa e posso precisar dela. – Argumentou, inocentemente, e confessou: -Além disso, eu tenho dificuldade de desapegar-me de minhas coisas.”

Em sua pressa de fugir, Gertrud informou-se pouco sobre o Caminho e trouxe consigo roupas e objetos desnecessários ou em excesso e deixou de trazer outros, essenciais, deixando-se em apuros, como no caso dos absorventes íntimos. Porém, em seu germânico estoicismo ela não dava sinais de dor nem queixava-se do peso da mochila e não aceitou a sugestão de despachar pelo correio o que não lhe era estritamente necessário. Talvez o tenha feito por apego, talvez para contrariar minha sugestão.

Talvez. Descobri que esta era uma palavra-chave de minha relação com Gertrud: talvez!. Embora ela fosse assertiva ao tratar com os fatos do dia-a-dia, quando o assunto dizia respeito a ela própria e à sua relação com outros, tornava-se reticente. Sempre havia um duplo sentido, tanto no que dizia e fazia como no que calava e deixava de fazer. Parecia que sempre deixava aberta alguma porta de emergência por onde pudesse escapar quando conveniente.

 

Cheguei a Puentela Reinacom os pés em chamas e os ombros ferroados pela dor, devido ao peso da mochila, que parecia aderir a mim como um casco de tartaruga. Ao banhar-me, massageei-me vigorosamente enquanto sentia com prazer a água a escorrer pelo corpo. Limpo e restaurado, senti que meu humor estava melhor.

O quarto que escolhêramos era pequeno para os dois beliches ali instalados. Gertrud deu-me passagem e devolveu-me o guia do Caminho que eu havia adquirido em Madri e que eu deixara sobre a cama. Sorriu e comentou sobre a beleza das fotos. Sentei-me na cama de cima e passei a tratar de minhas bolhas. Gertrud acompanhava a operação com interesse, deixando-me pouco à vontade. Vendo o curativo que me dispunha a fazer, ela deu-me um emplastro de silicone, que fez questão de colocar sobre a bolha.

“Não o tire; deixe que caia sozinho.”

Após o conforto do banho, do curativo e de um rápido passeio pelo lugar, sentei-me a uma mesa do pátio do albergue para estudar o trajeto do dia seguinte. Ao abrir o guia, notei que caiu de dentro dele um bilhete: ‘Para realizar seu sonho de ir a Barcelona’, junto havia uma nota de cinqüenta euros. Então fora para isso que Gertrud folheara o guia?! Ela realmente conseguira surpreender-me com sua insuspeitada generosidade e eu senti-me alegre por conhecer-lhe este outro lado. No entanto, sem titubear, usei o mesmo pedaço de papel para agradecer, dispensar o presente e acrescentar: ‘Sua amizade é o que realmente importa.’

Mal tive tempo de dobrar o bilhete com os cinqüenta euros dentro e ouvi chamarem meu nome. Eram José Maria e Beatriz, que tinham vindo a Puente dela Reinaespecialmente para visitar-me. Sem dúvida, este estava sendo um dia de agradáveis surpresas.

“Que bom ver vocês!” – Exclamei, manifestando minha alegria.

“Vimos Gertrud andando por aí e soubemos por ela que você estava no albergue.” – Informou Beatriz.

O casal queria saber tudo a meu respeito: como havia passado sem eles, se tinha companhia durante a caminhada, como estava o joelho, se a mochila pesava demais, e as bolhas? Cada pergunta testemunhava uma preocupação, um carinho e, enfim, uma manifestação da solidariedade peregrina.

Durante nossa conversa, insistiram que eu voltasse parte do caminho para visitar a ermida de Santa Maria de Eunate, que havia sido erguida no século XII pelos templários e é um dos marcos históricos e religiosos mais importantes do Caminho.

“São só dois quilômetros e meio até lá. Não deixe de ir. Vale a pena!” – Insistiu José Maria.

Ao despedirem-se, após a rápida mas feliz visita, pediram-me que deixasse mensagens para eles nos livros de atas dos albergues onde eu viesse a me hospedar, para que pudessem lê-las quando eles próprios por ali passassem.

Voltei ao quarto ainda tocado pelo o simpático gesto dos amigos. Aproveitando a ausência de Gertrud, coloquei o bilhete e o dinheiro entre as páginas de um mini-dicionário alemão-espanhol que nunca vira Gertrud utilizar. Mais tarde comentei com ela sobre minha disposição de ir a Eunate. Fiquei surpreso quando ela prontificou-se a ir junto. Sinal de que havia lido minha resposta à sua gentileza.

“Gostei do que escreveu, de que minha amizade é mais importante que dinheiro.” – Confirmou ela. Por um instante, cruzou-me a mente a idéia de que ela estivera me testando; preferi acreditar em sua generosidade. E nunca mais falamos sobre isso.

 

 

5

 

Acordamos antes dos demais e, deixando nossas mochilas no albergue, iniciamos nossa procura pela ermida de Eunate, que pela indicação de José deveria estar a pouco mais de dois quilômetros de Puentela Reina. A umidade da noite cobria a vegetação junto à trilha, molhando nossas botas. Uma brisa leve, porém gelada, insinuava-se por entre minhas roupas, arrepiando-me de frio. Ainda estava escuro quando chegamos a Óbanos, por onde tínhamos passado no dia anterior.

“Vamos desistir – sugeri. – Não há nenhuma indicação de Eunate e já andamos muito.”

Gertrud insistia que devíamos ir adiante: “Desistir, por quê? Se você quer ver a ermida, confie. Minha intuição diz que vamos chegar a ela.”

Como já havíamos andado bastante e sem saber onde localizar a ermida, paramos, aguardando o amanhecer, olhando em direção ao oriente. No céu as estrelas iam-se uma a uma, cedendo lugar a um dia sem pressa de chegar. Fazia frio. Gertrud esfregava as mãos nos braços cruzados diante do peito. Cheguei-me ao corpo dela e abracei-a frouxamente por trás e tomei-lhe as mãos entre as minhas. Era a primeira vez que ela deixava-se tocar e, de início, não parecia muito à vontade. Senti que sua resistência foi vencida quando reclinou sua cabeça em meu peito.

“Agora não precisamos ter pressa.” – Falei.

“Não, pressa alguma.” – Respondeu esfregando suas mãos às minhas, para aquecê-las.

O contato de nossos corpos trouxe-me calor e conforto. Gertrud aceitara ser tocada e mostrava-se receptiva. Eu no entanto, estava impaciente para que o dia amanhecesse e para que pudéssemos buscar informações sobre a localização da ermida.

Olhando ao redor, percebi que se acendera luz em uma casa logo adiante, do outro lado de uma rodovia. Fomos até lá e pedimos informação a uma senhora que abria uma janela.

“Senhora…, bom dia! Somos peregrinos e estamos procurando pela ermida de Eunate. Pode nos indicar o caminho?”

“Sigam pelo asfalto, em frente – informou ela, apontando a direção. – Não há como errar. Vão ver a ermida à direita, à beira da rodovia.”

Já estávamos andando quase outro tanto quando novamente pedi informações sobre a ermida a um homem, que carregava de plantas um carro, no pátio de uma empresa de jardinagem. A resposta foi a mesma:

“Sigamem frente. Jáestão perto. Fica à direita.”

O Sol ainda encolhia-se de frio atrás das montanhas, quando a vimos. De construção octogonal, a ermida de Santa Maria de Eunate é rodeada de colunas assentadas sobre uma base de oito faces e ligadas por elegantes arcos. O conjunto é protegido por um muro igualmente octogonal.

Enquanto eu circulava a parte externa da construção, procurando ângulos e detalhes para fotografar, Gertrud comentou:

“Ao que parece, para você é mais importante registrar imagens que admirar a ermida. É como se você não estivesse realmente aqui…”

Olhei para mim. Eu trazia a câmara fotográfica presa à cintura, como uma arma sempre disponível. Gertrud tinha razão e juntei-me a ela na admiração da ermida.

Isolada de quaisquer referências atuais, sua contemplação conduzia-me a um mundo imaginário de cavaleiros medievais e suas façanhas de romance, guerra e fé. O Sol juntou-se a nós, sendo ele a única testemunha viva da História e das lendas que envolviam a ermida. Em pensamento, agradeci a José Maria e a Beatriz, pois valera a pena visitá-la.

 Mesmo sem ter tido acesso a seu interior, o efeito da ermida de Eunate sobre mim foi extraordinário: meu humor melhorou e passei a ver o Caminho com outros olhos, apesar de saber que a visita acrescera dez quilômetros ao trajeto do dia.

Se eu estava feliz, Gertrud também parecia estar. Seria por si mesma ou por refletir minha felicidade? Estendi-lhe uma das mãos. Surpresa, ela fez uma careta e juntou sua mão à minha. À saída de Puentela Reina, já com nossas mochilas às costas, paramos para admirar a paisagem.

A bela ponte medieval sobre o rio Arga, vaidosa e imperturbável, franqueou passagem à conturbada história espanhola. O rio, manso e claro, aqui reflete a ponte, ali, a vila, além, a floresta, como um espelho líquido e inconstante, a buscar sempre a próxima imagem, ao longo de seu curso, tal qual o fazem as águas peregrinas a rolar no leito do Caminho-rio.

 

Desde Cirauqui passamos a ser acompanhados por um menino, que devia ter uns nove ou dez anos de idade. Dizer que nos acompanhava não é bem verdade: ora estava atrás de nós, ora à frente; ora muito próximo, ora deixava-se ficar distante. Apenas de quando em quando andava a meu lado de um modo displicente e distraído, quicando uma pequena bola de borracha. Às vezes emparelhava comigo e imitava-me os passos, fazendo-o com intencional exagero, como que para chamar-me a atenção. Também intencionalmente eu fingia ignorá-lo, olhando bem à frente, como que a apressar minha chegada a Estella. Gertrud resolveu ignorá-lo à sua maneira: irritada, ela apurou o passo, distanciando-se de nós. ‘Nós’, agora, éramos eu e o menino.

O menino mudou de tática. Passou a dar voltas ao redor de mim, com os braços abertos e inclinando-se ora para um lado ora para outro, imitando um planador.

Parei. Ele também. Postou-se diante de mim, largando os braços junto ao corpo e levantando a cabeça, como que a perguntar: ‘então, o que vai ser agora?’. Ao pensar que ele poderia estar me perguntado isso, procurei em seus olhos o ponto de interrogação que os espanhóis põem antes de iniciar a pergunta. Não havia interrogações em seu olhar, apenas exclamações e assertividade. Não fosse ele uma criança, eu teria desviado meu olhar, temendo que visse minha alma interrogativa, insegura e afogada em dúvidas.

Ele sorriu e perguntei-lhe o nome. Não respondeu. Disse-lhe meu nome e estendi-lhe a mão direita, que ele tomou com sua esquerda, puxando-me para frente, enquanto com o outro braço estendido apontava o horizonte ondulado pelas montanhas, onde o caminho se perdia. Bem, então se íamos na mesma direção, era melhor não perder mais tempo. Como ele não respondesse a nenhuma de minhas perguntas, acabei por calar-me. Contudo, meus pensamentos não calavam: de certa forma a presença do menino causava-me incômodo. A ele, no entanto, nada parecia incomodar, nem mesmo eu.

 

Por um bom tempo, minha mente ocupou-se do menino. Eu já havia me esquecido de Gertrud, que sumira, apressada, à nossa frente. Aos pouco, porém, meus pés estavam-me trazendo de volta a uma triste realidade, ocupando todos os espaços de minha mente e de meu corpo. Eles pareciam crescer e as botas, diminuir. Do atrito resultavam pés em brasa, não menos doloridos que os ombros, aguilhoados pelo peso da mochila. Não me lembro da paisagem daquele trecho, ou se o caminho ali era íngreme e difícil, como em alguns outros trechos. Nem mesmo lembro se parei para lanchar, nem se dividi meu lanche com meu perturbador companheiro e nem mesmo pensava mais nele.

Tão ocupada minha mente estava com a dor de meus pés e ombros que mal reparei haver chegado a Estella e nem percebi que o menino já não estava comigo. Lamentei minha desatenção e desapreço.

Chegando ao albergue onde iria passar a noite, joguei minha mochila sobre a cama superior do beliche no qual Gertrud já havia se instalado e que ela apontou rápida e displicentemente, como que a dizer ‘você não fez por merecer, ainda assim…’.

Sentei-me no chão e descalcei as botas e as meias, sentindo um repentino prazer em ter meus pés livres do torturante confinamento. Massageei-os com vagar e fiz alguns exercícios de alongamento e relaxamento. Gertrud observava-me, com ar debochado. Perguntou pelo menino. Mal-humorado, respondi que não sabia.

 

O albergue ficou agitado com a chegada de mais caminhantes, alguns dos quais estavam ali desde a noite anterior, recuperando forças para seguir. Havia homens e mulheres de diferentes idades, etnias e nacionalidades. Alguns andavam sempre em duplas, outros, em grupos aleatórios que iam se formando ao sair dos albergues ou ao ritmo da caminhada.

Saí para jantar num bar próximo, onde encontrei Tony, meu amigo canadense. Enquanto comíamos, sentados em frente ao bar, conversamos sobre tudo e nada, como se costuma fazer nos primeiros encontros, jogando aqui e ali sementes de assuntos que possam vingar, desenvolver-se e conservar viva a conversação. Cada vez que eu movimentava o corpo uma parte dele doía, em especial coxas e pernas, anunciando um sacrificado retorno ao albergue e uma noite rasa de sono. Tony dizia o mesmo a respeito de si próprio e ríamos de nossas mazelas e aventuras diárias e do que ainda tínhamos pela frente.

E então voltei a ver o menino. Ele estava correndo pela praça, junto com outras crianças. Fiquei olhando a alegre folia, a atenção dirigida principalmente para meu companheiro do dia. Custei a perceber que eu interrompera a conversação com Tony, que já havia pagado sua conta e despedia-se de mim. Desculpei-me e ele apenas sorriu e apontou em direção ao albergue. Continuei a observar as crianças até que, uma a uma, foram tomando o rumo de suas casas. ‘Meu’ menino ficou só, sem parecer aborrecido, quicando sua bola e apanhando-a ora com uma das mãos, ora com outra. Quando olhou em minha direção, fiz-lhe um sinal e logo ele estava a meu lado, sorrindo. Perguntei-lhe se estava com fome. Não respondeu. Repeti a pergunta, acompanhada de sinais. Respondeu que sim, com um movimento da cabeça. Pedi ao dono do bar que servisse ao menino o que ele desejasse comer.

O menino sentou-se na cadeira que lhe ofereci e mastigou valentemente grandes bocados do sanduíche, que socava na boca. Seus olhos sorriam e, quando tentou sorrir com os lábios, deixou cair parte do pão que mastigava e acabou por engasgar-se. Tossindo, pôs-se a pular, os braços estendidos para cima, sem deixar-se ajudar. Aos poucos, a crise foi diminuindo e logo enchia a boca novamente, ao máximo, e sempre olhando para onde daria a próxima mordida. Parecia que o menino mastigava também minha indiferença. De vez em quando olhava-me sem levantar a cabeça, fazendo o olhar raspar nas sobrancelhas. E sorria. Sorria sempre. Era um sorriso crescente, frondoso e invasor, pois que me invadia a alma, como a água de uma enxurrada que não se deixa conter. Ao pagar a conta, perguntei ao dono do bar quem era o garoto.

“Dizem que é filho do padre de Luquin – respondeu em tom malicioso. – Se quiser mesmo saber, vá até lá amanhã; fica no caminho.”

Procurei lembrar do que lera no guia sobre o trecho do dia seguinte, quando seguiria até Los Arcos. Luquin não era citada. Ademais, era provável que o menino ficasse por ali mesmo.

“Onde o menino vai dormir?” – Perguntei.

“Não se preocupe com ele. Ele se arranja.” – Respondeu, fechando a porta e desejando-me boa noite.

O menino seguiu-me até o albergue, acenou e foi para não sei onde. Fiquei sem ação. Meu corpo dolorido chamou-me à consciência a necessidade de deitar-me também, pois todos já estavam dormindo. Da parte superior do beliche, junto a uma das janelas do segundo piso, eu conseguia ver o belo pátio gramado dos fundos do albergue e a enorme Lua cheia que surgia no horizonte. Demorei a dormir; sentia-me indisposto e intranqüilo.

 

Acordei com frio e, ao puxar a manta, olhei pela janela e vi o menino dançando e girando à luz da Lua cheia. Desci, para observá-lo de perto, sentando-me num degrau da escada. Ao ver-me, parou e puxou-me para o gramado, abriu os braços e rodopiou lentamente, fazendo-me sinais para que o imitasse. Meio a contragosto e sem jeito, abri meus braços, e logo caí tonto e mareado. Enquanto isso, o menino aumentava o ritmo de seu movimento. Sentado no chão, eu o observava encantado. Quando o menino parou, fixou em mim seu olhar límpido e insistente; parecia que buscava perscrutar-me o coração. Senti-me invadido e, num excesso de pudor, levantei-me e fiz menção de entrar. Inesperadamente, ele lançou-se à mim,  abraçando-me a cintura, impedindo-me de entrar. Eu, confuso e desconfortável, olhava a Lua a nos olhar também com o mesmo olhar frio e distante de Gertrud, que nos espiava de uma janela. Afastei-me do menino e abri a porta do albergue. Olhei mais uma vez para ele e, num ato impensado, trouxe-o para dentro, indicando-lhe a parte superior do beliche ao lado do meu. Gertrud, deitada na cama abaixo da minha, virava de um lado para o outro, manifestando sua agitação. Em poucos minutos, o menino dormiu e, logo após, eu também.

Voltei a acordar com Getrud tocando os dedos de uma de minhas mãos, que eu deixara caída ao lado da cama. Não era propriamente um carinho, apenas toques; talvez ela tivesse receio de acordar-me. Ouvi Maria, uma peregrina argentina, sussurrando em espanhol: “¿Que haces?” (Que fazes?), repetindo a Gertrud a mesma pergunta que me fizera quando instalei o menino na cama sobre a sua. Assim como eu, Gertrud a deixou sem resposta. Silêncio. Deixei que o outro braço caísse, também.

“¡Mira!, hace cariño en esa mano, también…” (Vê!, faz carinho nessa mão, também) – Acrescentou Maria num novo e cúmplice sussurro, juntando-se, então, ao silêncio de todos. Movi levemente os dedos e ficamos nos acariciando, por algum tempo.


6

 

Pela manhã, acordei com os outros peregrinos preparando-se para a aventura do novo dia. O sono pouco fizera para recuperar-me das dores. Não fora meu propósito, eu teria ficado um dia ou dois em Estella para descansar. Saltei da cama e sacudi o menino. Ele acordou, espreguiçou-se gostosamente e sentou-se. Sorriu para mim (ele sempre sorria). Então, apressei-me a pôr-me a caminho. O menino, qual um cãozinho abandonado, seguiu-me.

 

Gertrud e eu não tínhamos compromisso de sairmos juntos; porém, várias vezes ao dia nos encontrávamos dando apenas um ‘Olá!’. Por entender que um queria ficar só, o outro seguiaem frente. Bastavaum parar para abastecer-se de água em alguma fonte ou para descansar, se o outro o alcançava, iniciava-se uma conversa que nem sempre se estendia por muito tempo. Mesmo quando caminhávamos juntos – em silêncio, ou trocando idéias -, Gertrud fazia questão de chegar sozinha aos albergues e nunca participou dos jantares que os grupos de peregrinos organizavam quase toda a noite. Estava sempre disposta a oferecer o que tinha, mas não aceitava nada que lhe fosse oferecido. Quando caminhávamos, perguntava uma ou outra coisa sobre mim ou sobre o Brasil e até mostrou-se atenta quando lhe falei da epopéia da colonização alemã no sul do País. De si mesma jamais falava, além da confidência que fizeraem Pamplona. Incomodava-mea forma com que Gertrud sempre parecia querer dar as cartas de um jogo que eu sequer queria jogar. Ela mostrava-se sinuosa, sem tornar claras suas intenções; agressiva, quando contrariada; infantil, quando conveniente e, no entanto, hábil no prender a atenção sobre si mesma.

 

Naquela manhã, Gertrud já havia partido sem esperar por mim. Contudo, como estava escuro, fez pouco progresso. Quando nos encontramos, ela olhou de soslaio para o menino e voltou seu olhar zangado para mim, como que dando a entender que eu estava atraindo encrenca. Dei de ombros: eu não chamara pelo menino e também não iria despachá-lo. Simplesmente o deixaria desistir quando bem lhe conviesse.

Ainda era escuro quando chegamos junto a uma vinícola, em cujo pátio havia uma inusitada e generosa fonte de vinho à disposição dos peregrinos. No local havia duas indicações do Caminho, uma para a frente e outra para a esquerda. Gertrud tomou o caminho da esquerda.

“Minha intuição diz que é o melhor caminho.” – Afirmou. Eu, se quisesse, que a seguisse, deu a entender com sua desafiante decisão.

Eu não tinha porque não segui-la. À medida em que o dia clareava e que avançávamos, podíamos ver vilas à nossa direita, sem, contudo, encontrar acessos que nos levassem a elas. Consultei o guia sem encontrar correspondência com a região em que estávamos. Contudo, os sinais confirmavam que podíamos seguir tranqüilos; este era, provavelmente, um caminho alternativo.

 

Eram muitas as vilas, cidades, trilhas e estradas por onde eu passava. Quanto mais avançava, mais confiança eu ganhava em meu senso de direção. Os sinais que indicam o Caminho tornavam-se mais evidentes aos meus olhos já treinados e eu já não temia perder-me. Às vezes, o único indício de que estava no caminho certo era as pegadas das botas dos peregrinos que ali passaram antes de mim. Mas, mais importante, eu também ganhava confiança em mim, sabendo que no encontro com tudo e todos havia o que aprender e eu estava aprendendo a abrir-me ao novo e ao inesperado. Mas, naquele dia, eu estava apreensivo.

 

O menino passou a tornar-se mais expansivo, correndo à nossa frente e indicando com precisão o caminho. A trilha lhe parecia familiar. Enfim, chegamos a uma vila. Pelo tanto que andamos, julguei que era Azqueta ou Villamayor de Monjardín. Enquanto procurava uma confirmação no guia, o menino tocou-me a mão e apontou para o alto: LUQUIN, dizia uma placa cerâmica afixada numa parede. Fiquei surpreso; o menino, faceiro; Gertrud, indiferente. Repeti para ela as palavras do dono do bar de Estella sobre a origem do menino. Ela desandou a rir e a girar os braços diante do corpo, como fazia sempre que não podia controlar a situação.

“Vamos deixar o menino aqui e seguir adiante.” – Ordenou ela, agora séria.

Eu precisava ir ao banheiro e perguntei à primeira pessoa que passava onde podíamos encontrar um bar.

“Lá, adiante, naquela placa. Mas está fechado, só abre à tarde…” – Respondeu o homem, dando sinais de pressa.

Enquanto isso, o menino sumiu. Por sorte nossa, estavam repondo os estoques do bar e permitiram-nos usar o banheiro. O dono e a esposa eram argentinos e haviam-se instalado ali havia poucos anos. Perguntei-lhe por que Luquin não era citado no guia.

“Luquin já fez parte do Caminho. Por razões políticas e econômicas seu traçado foi desviado para outras vilas.” – Respondeu e, sem que eu lhe desse permissão, riscou com caneta meu guia, mostrando o desvio que fizéramos e onde retornaríamos ao caminho oficial. Também carimbou o guia com o selo de Luquin.

Tão estranha era nossa passagem por ali, que lhe pedi para carimbar também minha credencial de peregrino. Gertrud parecia achar que estávamos demorando demais e fez menção de deixar o bar. Enquanto eu agradecia pela gentileza e me despedia, eis que surge o menino acompanhado de um homem que se identificou como padre Eduardo, da paróquia local. Senti uma contração no estômago, pois não mais me parecia coincidência estar ali,em Luquin. Aminha curiosidade sobre o menino e sobre a insinuação de ele ‘ser filho do padre’ estava prestes a explodir.

“Bom dia, padre!” – Cumprimentei, retribuindo à saudação.

Tiaguito, agora eu sabia nome do menino, abraçou-se à cintura do padre numa intimidade que, longe de constrangê-lo, o fez alegrar-se. Tomou a cabeça do menino entre as mãos, abençoou-o e fez sinal para que nos deixasse a sós.

“Tiaguito, então este é seu nome?! – Disse eu e perguntei: – Padre, este menino vem me seguindo desde Cirauqui e eu gostaria de saber por quê…”

“Se você não tem muita pressa, podemos conversar um pouco.” – Disse apontando a igreja, enquanto já caminhávamos para lá. Quando entramos, ele persignou-se em sinal de respeito à sua fé. O padre notou que eu não comungava com suas crenças. Sorriu mesmo assim e convidou-me a sentar.

“Não são muitos os que perguntam por Tiaguito… nem mesmo aqueles a quem ele acompanha por algum tempo. Qual seu interesse nele?” – Perguntou.

“Creio que acostumei com sua presença… ele é alegre, brincalhão e, parece-me, muito determinado.”

“Determinado, como assim?”

“Ele me segue desde ontem… é como se me tivesse escolhido para caminharmos juntos. De início tentei ignorá-lo, ele se afirmou… não parece conhecer a fadiga física e está sempre bem humorado. Não há como não gostar dele.”

“Bem, parece que ele o conquistou, realmente. Mas ainda assim, por que quer saber mais sobre ele?”

“Porque eu não sei até onde ele vai seguir comigo. Por enquanto, ele parece estar apenas passeando… mas o caminho é longo. Vamos supor que ele vá em frente comigo, este fato abre várias questões: sempre parecerá estranho um menino surgir do nada e pôr-se a acompanhar alguém que não conhece. Em algum momento alguém poderá estar procurando por ele e ele poderá estar se afastando de seu lugar de origem. Ele não me dirige a palavra nem parece entender-me e isso pode colocar-nos a ambosem problemas. Enfim, preciso saber onde ele mora, quem são os responsáveis por ele, se está sendo procurado pela família, coisas assim…”

“E também por que é chamado de filho do padre, não? – Perguntou divertido. Antes que eu respondesse, continuou: – Certo. Eu creio que sua preocupação com ele seja sincera. Tiaguito tem uma história diferente das outras crianças. Nós não sabemos muito a respeito de sua origem. Quando digo nós, refiro-me aos moradores e autoridades das vilas que ele freqüenta. O menino foi abandonado, ainda bebê, à porta de minha igreja. Foram iniciadas investigações sobre ele, tanto aqui, quanto em outras vilas próximas. Ninguém sabia de nada a seu respeito. Foi adotado por um casal sem filhos e eu sou seu padrinho de batismo. Seu nome foi-lhe dado em homenagem a São Tiago, padroeiro do Caminho. Considerando seu misterioso aparecimento, não lhe parece um nome adequado? No entanto, o casal que o adotou desencantou-se com o menino quando descobriu que ele era surdo-mudo. Com cinco anos, ele perdeu a mãe adotiva e o pai entregou-o a mim quando casou-se de novo. Aos poucos o pai adotivo foi perdendo o contato com o menino, até deixar de vê-lo. Consegui a guarda legal de Tiaguito, daí o porquê é chamado de ‘filho do padre’.”

“Sim. Mas – insisti -, ninguém, nem mesmo um bebê, surge do nada. De onde poderá ter vindo?”

“Temos algumas hipóteses. Ele pode ter sido simplesmente abandonado por ser filho ilegítimo ou por ser um ônus pesado a alguma família sem recursos. Ele pode ter sido abandonado por alguma família de imigrantes ilegais, que não voltou a procurá-lo para não se denunciar. Há, ainda, outras hipóteses. Mas após tanto tempo, já não mais importa. – Como eu continuava tento, o padre continuou: – Tiaguito aprendeu a ler a linguagem escrita e a linguagem dos sinais. É como nos comunicamos. Não adianta tentar colocá-lo numa escola, ele foge de todas… É, na verdade, um mestre em fugas e sempre acaba retornando às ruas e às vilas. Ele parece apreciar a vida que tem e em todas as vilas ele tem acolhida e recebe o necessário para sobreviver. Eu já desisti de tentar impor-lhe soluções, embora me preocupe sempre que ele não vem dormir em casa.”

“E, quanto ao futuro?”

“O futuro a Deus pertence… – Respondeu. – Quanto ao presente, Tiaguito tem planos: ele vem acalentando o sonho de seguir com os peregrinos até Santiago de Compostela, pois tem um pedido a fazer ao santo. Ele é forte, saudável e esperto; apesar de surdo-mudo, comunica-se com facilidade e, como você disse, é determinado.”

“Sei… Onde o senhor quer chegar?”

“Vou fazer-lhe uma proposta. – Disse o padre. – Tiaguito disse-me que quer ir com você. Se ele confia, também eu confio, afinal, as crianças fazem suas escolhas com o coração… – O padre fez-me sinal para que não o interrompesse. – Se vocês não se adaptarem um ao outro, você pode colocá-lo num ônibus e enviá-lo de volta a Luquin.”

Pelo visto demorei muito a decidir-me. Quando dei por mim, o padre e Tiaguito olhavam-me fixamente, como a tentar ler meus pensamentos. Em suspense, o menino comprimia sua bola junto ao peito como se fosse seu próprio coração. Então, ele sorriu ao perceber que eu que minha resposta lhe era favorável. Rapidamente, o padre ajeitou algumas roupas do menino em uma bolsa de lona, dessas de levar a tiracolo e enrolou uma manta de lã, que prendeu com elástico. Redigiu duas cartas: uma apresentando a si próprio, a Tiaguito e a mim e confiando-me o menino para que me acompanhasse até Santiago de Compostela. Assinou como tutor legal. A Tiaguito deu uma carta na qual o identificava e solicitava abrigo e que o colocassem num ônibus, se necessário e que ele, o padre, garantia o reembolso das despesas. Também deu ao menino uma credencial de peregrino, dando Luquin como início da peregrinação. Escreveu-me o número de seu telefone celular e trocamos nossos endereços eletrônicos, para nos manterem contato. Entregou-mecem euros e disse-me que de tempos em tempos eu seria procurado por algum amigo seu para repor o dinheiro gasto com o menino. Certamente ele havia planejado a viagem de Tiaguito em detalhes, com alguma antecedência, e apenas aguardava que algum peregrino se dispusesse a fazer-se acompanhar do menino.

A contração no estômago tornara-se mais intensa. Eu havia aceitado a missão por impulso, mas já não tinha certeza se fizera a leitura correta dos fatos que me levaram a tomar a decisão. Agora, era tarde para recuar.

Ajeitei minha mochila nos ombros e despedi-me do pároco. Passei pela praça, onde Tiaguito brincava novamente e acenei para ele. Ele veio correndo ao nosso encontro, abraçou o padre que despediu-se do menino fazendo um afago em sua cabeça. Se existe um sentimento que seja um misto de alegria e de tristeza, creio que o percebi nas feições do padre, por um breve instante. O menino, já impaciente, juntou-se a mim. Ambos acenamos em direção à igreja, dando adeus ao padre e a algumas mulheres que chegavam para a missa.

 

Ao retomarmos à estrada não havia sinal de Gertrud. Fomos encontrá-la, mal-humorada,em Los Arcos, onde iríamos pernoitar. De modo geral, as manifestações de alegria dos reencontros, as pequenas e grandes gentilezas, o cuidado e solidariedade de todos com cada um são espontâneas e autênticas entre aqueles que percorrem o Caminho. Aos poucos, ao contrário do que pensara de início, fui percebendo que homens e mulheres tornam-se peregrinos, não como atores representado um papel, mas, justamente por abandonar todos os demais papéis. Esta percepção aplicava-se a mim também, pois a consciência do fato exigia que eu me tornasse agente ativo de minha peregrinação.

De um modo ou de outro, eu acreditava que Gertrud não podia ser tão diferente e que seu temperamento arredio e anti-social poderia apresentar outras facetas, se lhe fosse dada oportunidade propícia ou se eu modificasse meu olhar sobre ela, como ocorrera em Puentela Reinaeem Eunate. Contudo, naquele momento,em que Tiaguitojuntou-se a mim, ela não pareceu satisfeita.

Resolvi que lhe devia uma explicação; no entanto, Gertrud interrompeu varias vezes a história que lhe contei, com comentários eivados de sarcasmo. Meu entusiasmo foi minguando e, quando dei mostras de desistir de nossa conversa, ela recuou.

“Desculpe! – disse, aparentemente arrependida. – Eu prometo controlar-me.”

De nada valeu sua promessa: voltamos aos extremos quando lhe contei que levaria Tiaguito até Santiago de Compostela.

“E você vai levá-lo até lá!? – explodiu. – Ou você é louco ou é muito ingênuo. O menino só pode lhe trazer encrencas.”

Tentei aparar o golpe dizendo que o menino voltaria para casa se eu tivesse muita dificuldade em conduzi-lo ou se ele quisesse diseistir.

“E eu, como fico nessa história?” – Ao perceber que eu poderia entender a pergunta como indício de ciúme, ruborizou-se, virou as costas e afastou-se.

 


7

 

A caminho de Logroño, Tiaguito e eu encontramos Gertrud, logo após Torres del Rio, quando paramos para lanchar à sombra de algumas árvores. Ela estava sentada ao Sol, sobre a terra recém lavrada e convidou-nos a juntarmo-nos a ela.

Certos de que Gertrud não repetiria o convite, em poucos passos estávamos a seu lado. Ofereci a Gertrud e ao menino o que eu tinha: pêssego, maçã, suco e bolinhos conhecidos por ‘magdalenas’. Ela agradeceu e recusou. Ofereceu-me iogurte e sanduíche. Agradeci e recusei. Tiaguito ofereceu seu lanche a Gertrud, como que para afirmar que mais tinha a oferecer que a receber.

Então, continuamos nossa caminhada rumo a Logroño. Tiaguito, esperto, seguia alguns passos à nossa frente para permitir que eu e Gertrud reatássemos nossas conversações. Como sempre ocorrera antes, entabulamos diálogos curtos. Não porque estávamos pobres de assunto e sim porque Gertrud somente respondia ao estabelecido fora das fronteiras de sua intimidade que, por sinal, eram demasiadamente amplas. Eu procurava respeitar seus limites; no entanto, a brevidade de suas respostas era desanimadora. De uma forma ou de outra, nossa conversa murchava, resultando em longos silêncios. Então ela diminuía ou acelerava os passos, distanciando-se de mim. Minha atitude mais comum era dar pouca importância às suas reações e não participar de seu ardiloso jogo.

Intempestivamente, ela confessou, num tom acusativo:

“Ás vezes, eu fico braba com você, porque você não reage…”

“E deveria?”

“Sim, para dar-me atenção, para demonstrar que se importa comigo.”

“Não creio que reagir às suas provocações seja a melhor forma de dar-lhe atenção.

“Porque fala em provocações?”

“Gertrud – respondi com desalento –, você que saber sempre mais sobre mim, mas esconde quem realmente você é; parece-me que me desafia a fazê-la falar, sempre e sempre; às vezes responde de forma áspera ou transforma nosso diálogoem discussão. Pareceque você quer apossar-se de mim, afastado-me das pessoas… de Tiaguito, em especial.”

Percebi que Gertrud sentiu-se chocada com meu desabafo. Tenso, enchi os pulmões de ar e o expulsei de um só jato. Ela contra-atacou:

“A verdade é que você não se agrada de mim. Prova isso é que não sabe conviver comigo e nem se esforça para isso.”

“Eu gosto de sua companhia, Gertrud, mas não gosto de como me força a defender-me ou atacá-la. Repare que novamente você tenta manipular nossa conversa, provocando nova discussão e fazendo-se de vítima. Será que não está me confundindo com as pessoas de suas relações, aquelas das quais você diz que fugiu?”

Ela calou-se. Dessa vez fui eu quem acelerou o passo. Sentia-me esgotado e irritado com o comportamento difícil, obstinado e agressivo que parecia querer submeter-me a sua vontade e controle. Tiaguito juntou-se a mim, tomando-me por uma das mãos. Senti que sua mão estava gelada. Mesmo sem ouvir o que disséramos, ele entendera que havíamos entradoem conflito. Sorripara ele tentando passar-lhe alguma tranqüilidade que eu mesmo não tinha.

Demorou algum tempo, antes que Gertrud emparelhasse conosco. Vi que girava um dos braços diante do corpo como fazia quando algo a incomodava. Tentei apaziguá-la:

“Gertrud, nós temos poucos dias de convivência pela frente, não lhe parece melhor fazê-lo de uma forma mais aberta, sem truques e sem jogos de ataque e defesa?”

Sempre acompanhando meu passo, ela permaneceu calada, mas balançava a cabeça, certamente assentando os pensamentos em seus devidos encaixes.

“Está certo; vamos tentar.” – Arrematou rindo um riso que apenas chegava ao limite da boca e que logo era engolido e sufocado.

 

Logroño, capital da província deLa Rioja, é uma cidade de certo porte e eu temia que Tiaguito se perdesse, razão pela qual o mantive próximo de mim quando saímos do albergue, como de hábito, para conhecer os pontos de interesse histórico, religioso e turístico locais. À medida em que avançávamos em direção à catedral de Santa Maríala Redondae da Plaza Mayor, víamos construções antigas reformadas ou em reforma, cujas fachadas originais foram mantidas, desfazendo a má impressão causada por outra parte da cidade, cujas casas, prédios e igrejas, abandonadas e decadentes, estavam prestes a ruir.

Sentamo-nos em frente a um bar, na Plaza Mayor, e, enquanto eu degustava cerveja, tirei as sandálias para sentir o chão frio sob os pés em bolha e relaxei os ombros que já não doíam tanto. Seria demais esperar que Tiaguito ficasse comigo. Tão logo viu outras crianças, deixou de lado seu refrigerante e correu para juntar-se a elas. Provavelmente Logroño era a primeira cidade daquele porte que ele conhecia, assim teve de aprender novas formas de fazer amizades, mais sofisticadas, exigentes e discriminadoras.

Determinado, persistiu até ser aceito nas brincadeiras. A praça é ampla e, de onde estava, eu podia ver Tiaguito e deixei-o por conta, voltando minha atenção a usufruir do vai-e-vem de peregrinos conhecidos que me acenavam e sorriam.

Minha dispersão acabou ao ouvir uma voz que xingavaem alemão. Era Gertrudque, segurando uma das mãos de Tiaguito, discutia com uma mulher espanhola, que revidava no mesmo tom. Felizmente, a cena durou pouco. Tiaguito e Gertrud vieram em minha direção. Ele, feliz. Ela, indignada.

“Que houve?” – Perguntei.

“Um dos meninos emprestou sua bicicleta ao Tiaguito. Enquanto ele andava, apareceu a mãe do menino, ao qual ordenou que tomasse a bicicleta de volta e que não brincasse com crianças estranhas e, ainda, xingou Tiaguito e o mandou embora.” – Respondeu ela, sem dar mostras de acalmar-se.

“E, como sabe o que a mulher disse, se você não entende espanhol?” – Provoquei.

“Ora…, ora…, isso a gente sabe… por instinto, por intuição, sei lá!”

Calei antes que sua fúria se voltasse contra mim. Fiz um gesto para que sentasse. Ela colocou sobre a mesa um livro e notou que eu, curioso, tentava ler o título.

“‘Auf dem Jakobsweg’. Conhece?” – Perguntou.

“Nem faço idéia.”

Ela apontou para o nome do autor: Paulo Coelho e entrou no bar para fazer seu pedido. Abri o livro, procurando pelo título original: ‘O Diário de um Mago’. Gertrud voltou e sentou-se conosco, já tranqüila.

“Que tal lhe parece o livro?” – Perguntei, ao devolvê-lo.

Ela pensou um pouco, antes de responder:

“Não sei bem o que dizer. É difícil para mim, aceitar que uma pessoa possa ser um mago, nos dias de hoje. É muito fantasioso ou esotérico, para o meu gosto.”

“E se você lesse o livro apenas como quem lê uma história, sem questionar-se se verdadeira ou não?”

“Eu não sei ler assim, quando o autor afirma ou insinua que está relatando fatos reais…” – Respondeu, com ênfase. Não me pareceu que sua resposta escondesse uma incapacidade de identificar o real e a ficção. Ela era autêntica, grande mérito seu; é ou não é: eis sua questão.

“Voltei a ler o livro recentemente. – Afirmei. – Nada sei sobre a Tradição da qual Paulo Coelho escreve, nem de sua doutrina ou de seus rituais. Mas os processos internos que ele descreve parecem-me possíveis de ocorrer a uma pessoa em busca de auto-conhecimento e transformação.”

“Processos internos… – zombou ela. – Só vou continuar a ler porque não sou de desistir… Quem sabe, quando terminar, eu mude de opinião?”

O garçom trouxe o pedido de Gertrud. Chá para ela, cerveja para mim, refrigerante para Tiaguito e bolinhos com cobertura de chocolate para todos. Ao que me pareceu, ela estava selando um acordo de paz e de cooperação. Sorri e brindei em silêncio, erguendo o copo. Ela retribuiu brindando com a xícara.

A conversa prosseguiu em torno da literatura de Hermann Hesse, seu conterrâneo. Resumi-lhe um dos livros que ela não lera: Knulp. Descrevi o personagem e sua história e, como sempre, o final trouxe-me uma forte emoção. Ela fez um comentário pouco elogioso a minha narrativa; um tanto magoado, calei e fingi que procurava por alguém na praça.

Quando voltei a olhar para ela, vi que Tiaguito se instalara em seu colo. Como resistir ao mestre do encanto? O menino conquistou-a e ela, com o correr dos dias, passou a dedicar-lhe atenção, seja pousando um braço sobre os ombros dele, ajeitando-lhe a roupa, dividindo com ele seu lanche ou, ainda, costurando a tira de sua sacola de forma a transformá-la em mochila. Tiaguitoapreciava essas manifestações de bem-querer.

Embora muitos peregrinos prefiram andar a sós e em silêncio durante o trajeto, nos albergues são extremamente gregários, trocando informações sobre o Caminho e falando de suas alegrias, descobertas e contratempos do dia e também sobre suas origens e interesses. Com freqüência, formam grupos para preparar seu jantar ou ao a algum restaurante para confraternizar em tono de algumas taças de vinho ou de cerveja, enquanto jantam. Naquela noite, em Logroño, coube-me preparar uma macarronada ao molho de tomate, cebola, pimentão e chorizo frito (lingüiça), enquanto outros cortavam o pão, preparavam as saladas e punham os pratos e talheres à mesa.


8

Já havíamos passado o Alto de San Antón indo em direção a Nájera, quando paramos para lanchar e descansar, à beira da estrada. Enquanto comíamos, um peregrino parou e conversou conosco, sob o pretexto de solicitar-nos uma informação. Fui buscar resposta em meu guia, sem sucesso. Vendo que Gertrud consultava um guia alemão sobre o Caminho, o peregrino entabulou com ela uma animada conversa naquele idioma. Convidamo-lo para lanchar conosco, ele disse ter pressa. Um fato banal, não fôssemos encontrá-lo momentos depois tocando uma estranha guitarra artesanal em pleno vinhedo, tendo como ouvintes atentos e encantados vinhateiros. O instrumento preenchia o ar de um som límpido, firme, afinado e encantador. O músico tocava e cantava ‘Imagine’, de John Lennon, alternando os idiomas inglês, alemão e espanhol a cada estrofe. Todo vestido de preto, lenço à moda cigana na cabeça, ele era a imagem atualizada da cigarra deLa Fontaine, porém de uma história com final feliz. Terminada a canção, segui pensando que também ‘I’m a dreamer, but I’m not the only one’ (sou um sonhador, mas não o único). Só então percebemos que Gertrud não estava mais conosco. Fomos encontrá-la já instalada no albergue de Nájera, onde naquele dia ocorria uma festa do vinho.

Assim que chegamos, Gertrud chamou-me para fora do albergue e disse, quase sussurrando, aflita e gesticulando muito:

“Eu gosto de você. Mas não estou apaixonada por você. Entende?”

“Sim, entendo…” – Respondi, surpreso tanto pelo inesperado da declaração em si como pelo fato de vê-la escancarar as fronteiras de sua intimidade.

“Para mim está bem, assim. Se não estiver para você, é melhor nos separarmos…”

“Certo. Está bem assim, para mim também. Eu gosto de sua companhia e também não estou apaixonado.” – Afirmei com sinceridade, mas um tanto divertido com seu jeito racional de lidar com suas emoções.

 

No entanto, há tempos eu havia notado que as pessoas, não poucas vezes, fazem uma afirmação quando, em realidade, pensam ou sentem o oposto, quer estejam conscientes ou não da contradição. Até então eu não havia imaginado que minha relação com Gertrud pudesse perturbá-la afetivamente. Sua declaração deixou-me de sobreaviso. Será que o iceberg germânico estava derretendo?

Eu via Gertrud apenas como uma companheira de caminhada. Eu gostava de sua companhia, até porque era a mais constante, mas era só. Como eu não tinha intenções ou expectativas em relação a ela, também não tinha sentimentos ou paixões a esconder. Se não por outro motivo, a certeza de um convívio de curto prazo tornava fácil eu respeitar seu modo de ser; respeitava até mesmo seus rompantes de rebeldia e auto-suficiência, sem queixas ou cobranças, como nas vezes em que ela seguia adiante quando por alguma razão eu parava ou diminuía o passo, ou como invariavelmente ela se irritava quando eu deixava-me ficar para conversar com alguém ou para visitar mais demoradamente alguma vila, praça ou igreja, pelos quais ela não demonstrava interesse. Contudo, creio que meu desapego em relação a ela foi o que fez Gertrud confiar em mim e a apreciar-me como companheiro de caminhada. De minha parte, eu já havia demonstrado, por várias vezes e de várias formas, que sentia apreço por sua companhia, sem esperar reciprocidade.

Mas, acima de tudo, eu permanecia fiel ao entendimento que tinha do Caminho: que era uma metáfora de meu próprio caminho interior. Esse entendimento tornava desejável e rica a minha relação com pessoas, acontecimentos e lugares, pois que com todos e tudo eu poderia aprender algo sobre mim. Inclusive com Gertrud.

 

Também os peregrinos tiveram seu quinhão da festa do vinho. Os festeiros de Nájera, comemorando a boa safra de uva de ótima qualidade, enviaram ao albergue uma farta porção de excelente cozido de carnes e legumes, acompanhada de muitos litros de vinho, igualmente excelente.

A Tiaguito não faltou diversão nem companhia. Brincou a tarde inteira no belo espaço entre o albergue e o rio, em cujas margens gramadas eu mesmo sentei-me para apreciar a paisagem e a festa e fazer minhas anotações do dia. A ausência de Gertrud passava-me despercebida e só voltei a vê-la após o jantar, quando eu lia algumas poesias de Mário Quintana, silencioso e inspirador amigo dos momentos de reflexão.

Gertrud sentou-se a meu lado, num banco em frente ao albergue. Fechei o livro. Sorrindo, ela disse:

“Continue lendo, eu não quero atrapalhar. – Pouco depois, acrescentou: – Leia em voz alta; eu gostaria de ouvir…”

Eu li em português e só então eu traduzi para o inglês:

‘Os poemas são pássaros que chegam

não se sabe de onde e pousam

no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam vôo

como de um alçapão.

Eles não têm pouso

nem porto

alimentam-se um instante em cada par de mãos

e partem.

E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

no maravilhado espanto de saberes

que o alimento deles já estava em ti…’

“Ouça esta, que parece ter sido escrita em homenagem ao Caminho” – E li:

‘Se as coisas são inatingíveis… ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!’

Gertrud ouvia calada e atenta, balançando levemente a cabeça na mesma cadência dos versos verde-amarelos, que ela parecia degustar com prazer. Li várias outras poesias que falavam incessantemente de estrelas. E concluí com uma que se aplicava ao desapego que o Caminho nos ensina e exige:

‘Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.

Com ele ia subindo a ladeira da vida.

E, no entretanto, após cada ilusão perdida…

Que extraordinária sensação de alívio!’

Grande parte dos peregrinos já estava deitada, quando entramos no albergue. Cobri Tiaguito e deitei-me, dormindo de imediato.


9

 

Deixamos Nájera para trás e seguimos em direção a Santo Domingo dela Calzada. Já havíamos passado por várias vilas e cidades ainda não conhecidas de Tiaguito, que estavam além das fronteiras que ele havia freqüentado.

Ao pararmos para nosso desjejum num do bares da Plaza de España, em Azofra, Tiaguito expressou seu fascínio com esta nova situação, sorrindo feliz e dançando entre as mesas, convidando-nos a participar.

Surpreendentemente, Gertrud levantou-se e ensaiou alguns passos desajeitados, girando os braços como a dar impulso ao seu riso contido e nervoso. Aos poucos, porém, ela desatou os nós do próprio riso e descobriu-se rindo frouxa e espontaneamente e, animada com pelo ritmo das palmas de outros peregrinos, foi desenvolvendo uma dança elegante e sensível. Surpresa, cobriu a boca com ambas as mãos, mas seus olhos continuavam a sorrir. Movida pela consciência de sua remissão, seu rosto parecia transfigurado por uma intensa e contagiante alegria. Então, ela e o menino deram-se as mãos e rodopiaram até caírem exaustos.

Os demais peregrinos já haviam partido, quando pagamos a conta e continuamos nossa caminhada. Os três estávamos alegres, porém perdidos em nossos próprios pensamentos e emoções.

 

À saída de Azofra há uma área de descanso, onde encontramos Bob – amigo e conterrâneo de Tony – entretido com a observação de um labirinto circular de pedras, provavelmente feito por peregrinos, recentemente.

Ele olhou-nos e pareceu divertido ao ver que eu e Gertrud nos dávamos as mãos. Cumprimentou-nos e apontou para o círculo de pedras.

“É uma das formas do Jogo da Oca, um jogo muito antigo, que remonta aos celtas, que ocuparam essa região antes dos romanos; para eles, o jogo representava a passagem do mundo material para o mundo espiritual.”

“E como se joga?” – perguntei, ignorando o aperto que Gertrud dava em minha mão.

“É mais fácil entender quando o jogo tem a forma de um retângulo, com sete fileiras de nove quadrados. Cada um desses quadrados representa um desafio a ser superado até chegar-se ao fim: a conquista do mundo espiritual.”

“Creio que já vi outros desses jogos ao longo do Caminho.” – Observei.

“Sim; também eu os vi. Para muitos o próprio Caminho é uma forma de jogar e a chegada a Santiago de Compostela representa a conquista da Sabedoria”. – Bob acrescentou, enquanto sentava-se para trocar suas botas por sandálias.

Acenei-lhe em despedida e fiz sinal a Tiaguito para vir comigo ao encontro de Gertrud, que seguia logo à frente. Após um rápido descanso em Cirueña, seguimos por pouco mais de uma hora até Santo Domingo dela Calzada.

 

Uma vez instalados no albergue, fomos conhecer a cidade. O principal marco local é a catedral que, como outras ao longo do Caminho, foi edificada com diferentes estilos arquitetônicos, indicando ampliações ou reformas através dos tempos. Ali estão presentes e convivem harmoniosamente o românico, o renascentista, o gótico e o barroco.

Em visita a seu imponente interior, fui distraído pelo galinheiro que faz lembrar a ingênua lenda sobre o poder milagroso do santo, causando-me espanto e desconforto. Meus amigos pareciam divertir-se com a insólita presença, e menino imitou o bater de asas e o ciscar das galinhas.

Gertrud e eu passamos a tarde passeando pela cidade, dando-nos as mãos, de quandoem quando. Tiaguito, como sempre, foi em busca de outros meninos para brincar.

 

Os bares estavam repletos de peregrinos, que disputavam as mesas entre si e com os moradores da cidade. Gertrud, avessa a aglomerações, sugeriu que fôssemos a uma pequena tienda onde descansamos, fizemos lanche e compramos nossos mantimentos para a noite e a manhã seguinte.

 

10

 

Era muito cedo, na manhã seguinte, quando deixamos o albergue da abadia cisterciense, a tempo de ouvir o coro das monjas cantando as matinas. Entramos na igreja para apreciar o canto, por alguns momentos. Para meu espanto, suas paredes eram claras e limpas – despojadas de pinturas, estátuas, entalhes ou vitrais – e seus altares apresentavam uma simplicidade comovente. E, no entanto, eu sentia, era um ambiente propício a falar-se com Deus – frente a frente, de coração a coração -, como fazia Tiaguito, absorto em sua devoção. Eu, por falta de prática, rezei uma prece telegráfica, embora sincera. Gertrud, por sua vez, nos aguardava em frente à igreja, pronta a marchar para Belorado.

Como os demais peregrinos, fazíamos paradas regulares para descansar e abastecer-nos de água e comida. Havíamos parado em Grañón e só voltamos a parar em Viloria de Rioja. Por falta de um bar no pequeno povoado, almoçamos os sanduíches que trouxemos conosco. Próxima parada: Belorado.

Uma das primeiras preocupações diárias de um peregrino ao chegar à vila ou cidade que escolheu como destino é procurar por um albergue. Há localidades em que há apenas um, em outras, o peregrino pode escolher o que mais lhe convém. Assim que chegamos a Belorado, perguntamos a dois homens onde encontrar o albergue municipal.

Um deles nos indicou como chegar até lá e acrescentou:

“Antes de irem ao albergue, talvez seja conveniente vocês conhecerem a hospedaria deste meu amigo.”

“E onde fica a hospedaria?” – Perguntei a contragosto, incomodado com a impertinente sugestão.

“Aqui mesmo.” – Respondeu o hospedeiro, apontando uma bela casa de três pavimentos, feitaem pedra. Gertrude eu nos olhamos e decidimos conhecê-la, mais em agradecimento pela informação que pelo interesse.

No térreo havia uma sala de estar, o refeitório, o bar, a recepção e um lavabo. Os quartos situavam-se nos pavimentos superiores, que fomos levados a conhecer. Entramos num deles, de piso cerâmico e paredes em tom alaranjado. Havia duas camas de solteiro, bastante largas, com florões em ferro nas cabeceiras. O quarto era amplo e confortável e dispunha de banheiro. O aparelho de televisão interessou Tiaguito, fato percebido pelo hospedeiro. Os três estávamos encantados. No entanto, meu entusiasmo derreteu-se com o calor do preço: quatro vezes mais do que pagaríamos num albergue.

“Eu fico. – Afirmou Gertrud, alisando a colcha, conferindo a brancura dos lençóis e afofando o travesseiro. – Creio que mereço um pouco de conforto e privacidade… – acrescentou, olhando para mim, e continuou, como se eu a reprovasse: – É só por um dia; eu acho que vocês deviam ficar também.”

Decidida e livre de preocupações, ela tirou sua mochila, colocando-a no chão. O hospedeiro levou a mim e a Tiaguito ao corredor, fechando a porta do quarto que agora era de Gertrud.

“Venham ver este outro, aqui.” – Sugeriu ele, abrindo outra porta e ligando a  televisão, para encanto de meu amiguinho.

O quarto era todo em tons de azul e o teto de alvenaria branco e riscado com grossas toras de madeira escura. Também este tinha banheiro privativo. Ainda cauteloso quanto ao preço a pagar, eu pensava nas palavras de Gertrud, já instalada no outro quarto: ‘É só por um dia… eu mereço conforto e privacidade’. Ela estava revelando um lado que me era desconhecido: junto com o dever ela passava a admitir o prazer. E por que não?

Tiaguito adivinhou minha decisão e já estava se despindo, sacola jogada ao chão. Sem que fosse necessário eu dizer coisa alguma, o hospedeiro colocou a chave pelo lado de dentro da porta.

“Fiquem à vontade, podem acertar a conta mais à tarde…” – Informou ele, satisfeito.

‘Sim, eu mereço!’, eu pensava, importunado por um leve sentimento de culpa. ‘Posso poupar um pouco aqui, um pouco ali e vai dar tudo na mesma’, eu consolava-me. Tiaguito saiu do banho vestindo a mesma roupa; só lavara a cueca, que me estendia para pendurar em algum lugar. Antes que saísse, escrevi-lhe um bilhete dizendo que eu iria dormir um pouco e lhe dei algumas moedas para o lanche. Eu confiava em seu senso de direção e também sabia que não iria meter-se em encrencas. Calmamente, aparei a barba que eu deixava crescer e tomei banho, apreciando cada momento daquela delícia suprema que era ter um banheiro exclusivo.

Quando voltei ao quarto, para minha surpresa, Gertrud olhava para mim, entre apreensiva e divertida, deitada na cama próxima da janela e coberta até os ombros. Deitei-me na outra cama e ficamos nos olhando por um tempo, embora soubéssemos o que iria ocorrer. Eu precisava absorver a Gertrud que se me apresentava agora, diferente da mulher que eu conhecera no início do Caminho. Ela parecia estudar-me do mesmo modo. Ocorreu-me que éramos o espelho um do outro: e que nele estávamos vendo apenas um reflexo de nós mesmos.

Nem eu nem ela éramos jovens, já então. Perdêramos o ímpeto da paixão, mas ganháramos experiência, sensibilidade e tranqüilidade. Ela ajeitou a colcha, num movimento rápido e intencional que deixou à mostra os seios nus e voltou a cobrir-se. Ajoelhei-me no chão, junto à cama de Gertrud. Acariciei-lhe os cabelos curtos e ainda úmidos. Com um dedo toquei suavemente sua testa, deslizando-o pelo nariz, lábios e queixo. Acariciei-lhe o rosto, primeiro com uma das mãos, depois, com os lábios, até encontrar os seus. Então, obtive a confirmação de seu desejo.

E, abandonados, deixamos que nossos corpos falassem por si. Gertrud e eu, transformados, éramos a expressão do prazer: seus olhos sorriam no mesmo compasso de seus lábios e seu rosto resplandecia de alegria e sensualidade e eu sentia em cada fibra de meu corpo cada fibra de seu corpo…

 

Acordei com Tiaguito esbarrando em minha cama, olhando-me com cara de quem pede desculpas e acenando a mão em que segurava sua bola, que viera buscar. Fiz-lhe um sinal para que se fosse de uma vez. Olhei para a cama ao lado. Vazia e arrumada. Típico de Gertrud? Sem dar importância à pergunta, espreguicei-me, satisfeito. Alguém bateu à porta, enrolei-me na colcha e fui atender. Era ela.

“Vamos tomar uma cerveja?” – Ela convidou.

“Sim, claro! Entre. Eu me visto num instante.” – Respondi. Reparei que Gertrud não tomava mais chá, agora tomava cerveja.

Fomos a um bar e sentamos a uma das mesas externas, de onde podíamos ver crianças brincando, Tiaguito entre elas. Gertrud e eu nos admirávamos da espantosa habilidade do menino de fazer-se incluir nas brincadeiras. Ao nos ver, ele veio correndo, deu duas voltas em torno da mesa e retornou, também correndo, ao jogo de bola. Estava suado, mas seria difícil fazê-lo tomar outro banho. Porém, vê-lo correr e brincar após uma caminhada de cinco horas e sabendo que estaria disposto no dia seguinte a voltar ao Caminho era tudo o que realmente importava. Tê-lo por companhia, longe de ser um fardo, era estimulante.

Quanto a nós – Gertrud e eu – não tínhamos porque falar de nossa intimidade amorosa. Estávamos plenos de satisfação e vazios de expectativas. Presente era o tempo. O futuro não era cogitado. E, talvez por isso, nossa alegria era tão intensa.

A cada passo que a noite dava sobre Belorado, mais crianças se recolhiam às suas casas. Quando, enfim, Tiaguito ficou só, juntou-se a nós para o jantar. Ele parecia cansado, mas atento o suficiente para perceber que algo especial havia ocorrido entre mim e Gertrud: a troca de olhares fora suavizada, nossas mãos tocavam-se por razão nenhuma, o sorriso era fácil e freqüente e trocávamos gentilezas a todo o momento. Por fim, ele pareceu concluir que se estávamos felizes, ele também podia estar. Sorriu e voltou sua atenção ao bife e às batatas fritas que transbordavam de seu prato.

De volta à hospedaria, Gertrud e Tiaguito foram dormir, enquanto eu fiquei na sala conversando com o hospedeiro.  Num certo momento, ele colocou-me às mãos uma revista de turismo, na qual havia uma reportagem sobre os sítios arqueológicos de Atapuerca, por onde iríamos passar. Notando meu interesse, o hospedeiro sugeriu que visitássemos a vila. Fui dormir com a sugestão tomando volume. ‘Amanhã eu decido’, pensei.


11

 

Quando saímos de Belorado, Gertrud e eu ora nos dávamos as mãos, ora nos abraçávamos, alegres e faceiros como a manhã que surgia. Tiaguito, ainda sonolento, precisava ser estimulado para manter-se em movimento.

Ao passarmos por Tosantos vimos ao longe, à nossa direita, a ermida da Virgem dela Pena, parcialmente coberta pelas árvores.  A ermida foi escavada em rocha, na montanha, e é cercada de muitas grutas que já foram habitadas há muito tempo.

“Lamento não poder visitar a ermida, pois nos tomaria muito tempo. – Disse eu a Gertrud. – Mas eu gostaria muito de chegar até Atapuerca ainda hoje, pois tenho esperança de poder visitar os sítios arqueológicos da região.”

Eu sabia que assuntos de história e arqueologia não a interessavam muito. Antes de responder, ela consultou seu guia do Caminho:

“Sim, podemos ir a Atapuerca, pois assim ficaremos mais próximos de Burgos.”

Infelizmente, vi frustradas minhas esperanças. Assim que chegamos, eu soube que os sítios só podem ser visitados aos finais de semana. Também não havia mais lugar no albergue para ficarmos. Seguimos, então, para Olmos de Atapuerca, um pouco adiante.

Enquanto aguardávamos que o banheiro do albergue desocupasse, eu esvaziei minha mochila sobre a cama, à procura de roupas limpas, toalha e sabonete. Tiaguito sumiu, como sempre.

No banheiro havia dois chuveiros que se fechavam com cortinas plásticas, o que era comum nos albergues. Os peregrinos banhavam-se e trocavam-se dentro deles, sem serem importunados. Gertrud já estava num deles e eu ocupei o outro. De repente, abriu-se a cortina de meu chuveiro e nele entrou uma Gertrud sorridente e travessa. Sem que eu pudesse reagir, ela abraçou-me e beijou-me. Surpreendido, senti-me invadido de lisonja e expectativas, logo suplantadas por uma inoportuna preocupação com o decoro observado nos albergues.

“Não, Gertrud, agora não! Pode entrar alguém.” – Adverti.

Um tanto decepcionada com minha reação, ela voltou ao seu chuveiro para terminar o banho.

Aquilo não era típico dela, a ousadia. ‘Gertrud não é mais a mesma’, eu pensei.

Tão logo terminei de lavar e estender minha roupa, aproveitei algum tempo para enviar mensagens pela Internet. Gertrud havia saído sozinha a explorar o pequeno lugar. Acabamos por nos encontrar e fomos à procura do único bar do lugar para beber algo e encomendar nosso jantar.

Lá encontramos Tiaguito brincado com uma máquina de fliperama, gastando suas poucas moedas. Dei-lhe mais algumas e ofereci-lhe um refrigerante. Gertrud e eu tomamos cerveja e degustamos azeitonas e amêndoas, sentados junto ao balcão, enquanto alternávamos conversas e silêncios. Ela estava mais descontraída e falava quase sussurrando.

Estávamos por pedir nosso segundo copo de cerveja, quando entraram no bar Aaron, australiano, e Suzana e Emily, americanas, que nos convidaram festivamente para sentarmos com eles. Como Gertrud mostrou-se reticente, eles aproximaram uma mesa do balcão onde estávamos, sendo imediatamente repreendidos pela dona do bar. Com mau-humor, ela ordenou que a mesa fosse colocada em seu lugar, que eu e Gertrud não impedíssemos a passagem que dava aos banheiros e que Tiaguito parasse de jogar, pois o ruído da máquina estava incomodando os demais fregueses. Tudo foi feito como o ordenado pela metralha verbal da irascível mulher.

Aaron repetiu-nos o convite. Insisti com Gertrud para aceitarmos. Ela desculpou-se, disse que ia voltar ao albergue e deixou-me moedas suficientes para pagar sua conta e saiu. Definitivamente, ela não apreciava o convívio com pessoas desconhecidas e nem se dava a chance de conhecê-las.

Quanto a nós, entabulamos uma prosa descontraída, regada a cerveja e vigiados pela dona do bar. Terminado meu segundo copo, combinei com os jovens que nos encontraríamos na hora do jantar. ‘Contanto que venham após as oito e meia, não antes’ – havia nos informado a pouco simpática proprietária.

Retornando ao albergue, pedi ao hospitaleiro que indicasse o atalho que saía de Olmos de Atapuerca e encontrava a trilha do Caminho mais adiante, para que não tivesse que retornar a Atapuerca. Mostrou-me um mapa rascunhado pregado na parede e acrescentou:

“Basta dobrar à esquerda ao sair do albergue e seguir a sinalização. Dois quilômetros e meio à frente vão dar no Caminho.”

Gertrud lia, deitada em sua cama, quando comentei com ela sobre o atalho. Parecia zangada porque eu preferira a companhia dos jovens à dela. Apenas deu de ombros e continuou a ler. Falei que o jantar seria às 20:30 horas, horário estipulado pela taverneira. Indiferente, respondeu que não iria jantar e já havia comido qualquer coisa. Eu não queria irritá-la ainda mais, nem desculpar-me e, tampouco, suportar sua irritação. Assim, não dei mais importância a ela.

Sentei-me em minha cama e fiz curativos nas insistentes bolhas que tinha nas solas dos pés. Quando eu caminhava, tentava não pisar sobre elas e apoiava-me mais sobre os calcanhares. Minha esperança era que curassem logo. Enquanto esperava a hora do jantar, estudei o trajeto do dia seguinte, até Burgos.

No horário acertado, Tiaguito e eu encontramos nossos amigos no bar. A dona pediu-nos que esperássemos até que as mesas fossem postas, no refeitório. Tiaguito, sempre irrequieto, foi quem viu primeiro um móbile com três bruxas montadas em vassouras e uma caveira balançando sobre o balcão do bar e, malicioso, apontou para a taverneira. Todos rimos e desviamos o olhar quando a vítima da brincadeira nos encarou, zangada.

“Se uma é a mãe, as outras devem ser as filhas, – sussurrou Aaron, divertido. – Mas quem será a caveira?”

“O pai, certamente!” – Respondi. Mais risadas, mais um olhar repressor.

Fomos servidos pela filha, não mais simpática que a mãe. O jantar, contudo, estava excelente e a conversa, regada a vinho, fluía fácil. Cada um comentou um pouco sobre si mesmo e sobre as impressões do Caminho.

Aaron mostrou-se um bom conversador, desses que sempre trazem algum assunto novo e de interesse comum. Apesar de jovem, era capaz de fazer uma leitura crítica dos acontecimentos mundiais. Adepto da paz, da exploração responsável dos recursos naturais e da causa dos aborígenes australianos, discorria com conhecimento de causa e com paixão sobre estes temas. Dizia-se também adepto de boicotes, como forma de pressão e que usava as redes sociais da Internet para divulgar os ideais que comungava. No entanto, era extremamente afetivo, atencioso e divertido com todos. De quando em quando, gesticulava para Tiaguito, representando alguma piada ou brincadeira. O menino tornou-se seu fã.

Suzana viera do Texas. Jovem, bonita, inteligente e de bem com a vida. Iniciou o Caminho só, mas agradava-lhe ter companhia, contanto que não se tornasse compromisso. Emily era mais retraída, mas acompanhava a conversação com interesse e participava com satisfação sempre que solicitada.

Os três queriam saber de Tiaguito, com o qual simpatizaram e que havia sumido, provavelmente para brincar com o fliperama. Contei-lhes resumidamente a história do menino e da satisfação que tinha por caminhar em sua companhia. Ao pagarmos a conta, Aaron, que percebera uma certa satisfação de mãe e filha em verem-se livres de nós, troçou:

“Oh, destino cruel!, amanhã haverá novos peregrinos e novos aborrecimentos para as bruxas.”

O dormitório do albergue estava quase às escuras; apenas uma luz de través, vinda da rua, o iluminava. Cheguei a tempo de ver Gertrud acarinhando os cabelos de Tiaguito, sussurrando-lhe algo em alemão, uma oração, talvez.  Deitei, após ter ido ao banheiro. Na penumbra, vi que Gertrud estendia-me um braço. Acariciamo-nos as mãos por um bom tempo, tendo à lembrança a noite que passamosem Estella. Foimeu último pensamento da noite.


12

 

Ainda estava escuro quando acordei com Gertrud arrumando sua mochila, em germânica ansiedade de cumprir deveres com eficiência e escrúpulo. Eu havia planejado dormir um pouco mais, uma vez que teríamos uma jornada mais curta, até Burgos. Mesmo assim, levantei-me e chamei Tiaguito. Ele ronronou e espreguiçou-se com vagar, antes de levantar-se. Eu estava pronto. Dobrei a manta do menino e a fixei em minha mochila, deixando nossos sanduíches e sucos à mão, para comermos no caminho. Encontramos Gertrud já no andar térreo, impaciente, tentando em vão ajustar seu ritmo ao nosso, mais lento àquela hora da manhã. Eu já estava com minha mochila às costas quando lembrei de minha câmara fotográfica.

“Só mais um minuto, Gertrud. Vou tirar minha câmara fotográfica da mochila.”

“Eu já vou indo, vocês me alcançam depois.” – Retrucou ela.

Quando Tiaguito e eu saímos do albergue não vimos ninguém. Procurei à direita, na direção de Atapuerca, e à esquerda, na direção de Burgos. Ninguém que se pudesse ver com a pouca luz da iluminação pública.

“Droga! Mais uma vez ela quer impor seu ritmo.” – Exclamei, já arrependido de ter-me levantado tão cedo. Decidi ir pelo atalho à esquerda. Provavelmente nós a encontraríamos em breve.

Fomos seguindo o facho de luz da lanterna, procurando manter-nos no caminho certo. Pouco mais de meia hora depois, chegamos à trilha do Caminho. Nem sinal de Gertrud ou de qualquer outro peregrino. Não havia porque nos preocuparmos, afinal iríamos nos encontrar em Burgos, que era nosso destino naquele dia. Mas eu sentia-me frustrado e humilhado por não ter sido esperado por Gertrud. Também Tiaguito não parecia satisfeito: ele e ela haviam se tornado amigos, tão logo ela superou sua primeira reação de rejeição.

Se, naquele momento, eu não era possuído de sentimento poético algum, também o trajeto de acesso à capital da província era desprovido de poesia. Meu mau humor aumentava, pois comecei a sentir dor nas solas dos pés provocada pelas bolhas e também na perna esquerda, que percebia estar levemente inchada. A paisagem tornou-se mais agradável e urbana quando chegamos a Castañares, que atravessamos por uma avenida que a liga diretamente a Burgos, cuja catedral nos surgiu num repente de surpresa e admiração.

 

Chegamos a Burgos ainda não era meio-dia. Por ser uma cidade de expressivo tamanho, segurei firmemente uma das mãos de Tiaguito, a quem não agradou o grilhão. Aos poucos, fomos ambos cedendo; eu, por perder o medo que ele se extraviasse, ele, menos afoito, impressionado com o tamanho da cidade. Quando eu o soltava, ele procurava minha mão ou agarrava-se à minha mochila. Aos poucos, sem nos tocar, nos vigiávamos, para estarmos sempre próximos.

A catedral de Burgos, em estilo gótico, fascina à primeira vista. Suas variadas torres, rosáceas e vitrais são adornados de um requintado rendilhado. Igualmente majestosa é a vista interna: sustentadas por imponentes colunas esculpidas, as altas cúpulas são rematadas por zimbórios que mais parecem graciosas rendas suspensas por invisíveis fios celestes. Suas esculturas de santos e anjos e seus magníficos altares e retábulos, recobertos de ouro, ilustram histórias sagradas, com grande arte e didática.

Ainda encantado com cada detalhe, meu olhar foi atraído por uma cena inesquecível: sentado num banco próximo ao altar principal, com as mãos pousadas sobre o colo e o olhar compenetrado a observar a história ilustrada no retábulo, Tiaguito sorria, em silenciosa

Contemplação. Absorto, ele nada percebia à sua volta. Fiquei comovido com a fé do menino e aguardei-o, solidária e pacientemente, para continuarmos a visitação ao museu anexo à catedral e circular pelos arredores.

 

O albergue municipal está confortavelmente instalado num parque, à saída da cidade. Pareceu-me que se um dos motivos da localização é dar privacidade, silêncio e conforto aos peregrinos, outro, mais sutil, é mantê-los afastados dos sofisticados turistas europeus, asiáticos e americanos que se hospedam em luxuosos hotéis e que havíamos encontrado no centro da cidade.

Recebeu-nos José Luis, que dedica um mês ao ano a ser hospitaleiro voluntário. Organizado e atencioso, não mostrou pressa em atender um a um os peregrinos, explicando-lhes sobre o funcionamento do albergue. Tão logo nos instalamos, Tiaguito postou-se sentado sobre a cerca de toras que rodeia o pátio do albergue, à espera de Gertrud. A muito custo acompanhou-me até uma unidade médica, indicada pelo hospitaleiro, onde recebi o diagnóstico de tendinite no tornozelo esquerdo, curativo para minhas bolhas e vacina antitetânica, além da recomendação de permanecer pelo menos dois dias sem caminhar. Era final de tarde quando voltamos ao albergue. Tiaguito procurou por Gertrud,em vão. Comoiríamos permanecer mais dois dias em Burgos, ele logo percebeu que nós a tínhamos perdido. Silencioso e triste, deitou-se mais cedo que de hábito.


13

 

Pela manhã, enquanto eu observava os peregrinos deixarem o albergue e despedia-me deles desejando-lhes ‘¡Buen camino!’, senti uma certa tristeza, pois estava perdendo meu grupo de referência, os amigos que caminhavam no mesmo trecho e com os quais convivia ao cair da tarde. Evidentemente, entre eles incluía-se Gertrud que, se havia chegado a Burgos, devia ter-se hospedado em outro albergue.

Alguns poucos peregrinos tomavam seu desjejum nas mesas do pátio, mas o dormitório já estava vazio, à exceção de Tiaguito, que deixara-se ficar na cama, igualmente triste e desanimado. Fui chamá-lo, pois também nós devíamos retirar nossas mochilas para que o dormitório fosse limpo e aguardar o início da tarde para retornar. Ele levantou-se a contragosto e vestiu-se sem pressa, enquanto eu preparava nosso lanche.

Os peregrinos vindos de outros albergues passavam pelo parque, em direção à saída de Burgos. Alguns eram conhecidos, outros não. Mas todos mostravam-se igualmente corteses ao reconhecer o local como albergue de peregrinos e nos acenavam alegremente.

Então a vimos, creio que a um só tempo. Tiaguito correu para ela e abraçou-a pela cintura, extremamente emocionado. Gertrud pousou uma das mãos nas costas do menino e com a outra apertou-lhe a cabeça de encontro ao corpo. Seu olhar, contudo, estava dirigido a mim, emitindo diferentes sinais, conforme relaxavam ou contraiam suas pálpebras e pupilas: alívio, raiva, desdém, alegria… Apenas seu olhar falava; seu rosto mostrava-se impassível e seus lábios, mudos.

O menino percebeu a tensão e afrouxou o abraço, olhando para ela e para mim, angustiado. Provavelmente eu emitia em direção a ela o mesmo turbilhão de sinais. Tiaguito deixou-nos com lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces e foi sentar-se, pousando a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa. Joguei os braços para cima e os deixei cair ao longo do corpo, desanimado. Gertrud estava igualmente tensa, os punhos cerrados em torno das alças da mochila e os braços presos ao corpo.

“Então esta é Gertrud. – Cumprimentou o hospitaleiro, vindo em nosso socorro. – Eu sou José Luis. Prazer em conhecê-la.”

Gertrud esperou que eu traduzisse. Só então, apertou a mão que lhe era estendida e aceitou o convite para sentar-se conosco.

“Gertrud, você não imagina a aflição desses meus dois amigos por perderem-se de você, ontem. Que bom que agora vocês têm a oportunidade de reencontrar-se.” – Disse José Luis, apaziguador, conseguindo fazer-nos esboçar um sorriso de agradecimento.

Quando Gertrud e eu voltamos a nos olhar, os sinais eram mais suaves, positivos e coerentes, mas nossas línguas ainda estavam travadas. Tiaguito tomou uma de minhas mãos e a aproximou de uma das mãos de Gertrud e nos olhou suplicante. Ficamos imóveis, porém o toque produzia um efeito progressivo de aproximação e degelo. Eu desandei a rir da nossa situação e de nossa confusão de sentimentos.

“Do que você está rindo?” – Perguntou ela irritada.

“De nós. De nossa situação. É ridículo estarmos emburrados um com o outro, como se nossa relação fosse um jogo de desafios, trapaças e armadilhas. É como se fôssemos veteranos de guerra conjugal.”

Surpresa a princípio, ela cedeu e riu seu antigo riso nervoso. José Luis fez sinal a Tiaguito e ambos nos deixaram a sós.

“Eu pensei que vocês já tinham saído daqui hoje cedo.”

“Não, eu devo ficar mais dois diasem Burgos. Veja!” – Eu disse, mostrando a perna inchada.

“Tendinite?”

“Sim. Provocada por eu evitar pisar sobre as bolhas.”

“Ah!, dói?”

“Não muito, mas a médica pediu-me para não forçar.”

“Sei. Então de qualquer forma eu vou perder vocês…”

“É, parece que sim.”

“Mas, que diabos!, onde vocês se enfiaram, ontem? – Perguntou, novamente zangada. – Eu esperei um tempão e nada de vocês aparecerem.”

Tentei controlar-me diante de sua fúria: – “Lembra que eu falei do atalho que saía de Olmos? Pois foi por ele que saímos. E você, onde estava? Por que não nos esperou em frente ao albergue?”

“Nem lembrei do atalho… Eu disse que ia andando… Eu esperei por vocês no mesmo lugar onde nos encontramos antes de irmos ao bar, por mais de meia hora. Cheguei a voltar ao albergue e já não havia mais ninguém. Você acha que eu fiz isso de propósito? Não! Não depois de Belorado…”  – Confessou ela, impulsivamente, interrompendo-se subitamente, surpresa e envergonhada.

Apertei-lhe as mãos e sorri, sem malícia, apreciando seus sentimentos por mim: – “Eu posso dizer o mesmo: não depois de Belorado…”

Ela retribuiu o aperto de mãos e o sorriso: – “Pena que vamos nos deixar novamente.”

“Mas, você não pode ficar conosco nestes dias, para continuarmos juntos, novamente?”

“Eu tenho pouco tempo para chegar a Santiago. E, um dia, iríamos nos separar de qualquer forma. – Afirmou, retomando o controle sobre si e seus sentimentos. Após uma pausa, acrescentou: – Nós dois sabemos que para onde eu vou não há lugar para você, assim como não há lugar para mim para onde você vai.”

Eu silenciei. Ocorreu-me que ela estava percebendo, desejando ou temendo nossa relação como algo permanente.

“Gertrud, eu reconheço que o que aconteceu e acontece entre nós foi e é algo intenso e verdadeiro, mas que deve ser vivido dia a dia, sem expectativas.”

Ela pareceu decepcionada. Silenciou por algum tempo e, então, suspirou profundamente e disse: – “Eles vão engolir-me de novo, eu sei…”

Fiquei surpreso com sua revelação. Não pelo que ‘eles’ poderiam fazer-lhe. Mas por descobrir sua expectativa de ser eu seu ponto de apoio em sua crise. Senti-me desconfortável tanto por ela ter-me ocultado sua expectativa quanto por eu desampará-la, apesar de tudo.

“Você não precisa deixar-se engolir por ninguém! Não é isso que veio buscar no Caminho: o poder decidir sobre o próprio destino?” – Afirmei, buscando em seus olhos a confirmação de meu palpite.

“É fácil falar. Você nada sabe sobre minha vida ou sobre as pessoas com quem convivo… E também não quero falar sobre isso. – Ela disse, levantando-se. – De qualquer forma fico contente por termos esclarecido nosso desencontro e por eu poder despedir-me de você sem mágoas.” – E estendeu-me a mão, num cumprimento formal.

Fiz menção de abraçá-la.

“Melhor, não!” – Impôs ela, recuando.

Então, foi até Tiaguito; ajoelhou-se diante dele, abraçou-o e falou-lhe em alemão palavras que soaram suaves e sensíveis, fazendo-o sorrir em meio à tristeza da despedida que ele pressentia. O menino beijou-a, soltou-se do abraço e correu a esconder-se e às suas lágrimas. Pobre menino, tivesse olhado para mim teria visto eu enxugar meus próprios olhos.

Gertrud acenou para José Luis e pôs-se na trilha que conduzia à saída do parque e ao Caminho…

 

A sensação de perda e abandono mostrou-se maior que a vergonha e Tiaguito permitiu-se chorar abraçado a mim, olhando-me triste e como que a perguntar: ‘- Então é assim o mundo dos adultos: entram uns na vida dos outros e depois se deixam, sem mais nem menos? E eu, como fico? Já perdi tanto na minha pouca vida e agora perco de novo’. Tudo isso eu lia em seus olhos, vendo neles meus próprios olhos e meus próprios sentimentos.

Pouco acostumado a uma relação tão difícil, levei tempo para ajustar-me e absorver o impacto que Gertrud me causara, sem deixar-me ferir e sem abandoná-la. No entanto, eu assistira sua transformação gradual nesses poucos dias em que convivemos. De um comportamento arredio, distante e autoritário, passara a expressar-se com mais confiança, entrega, prazer e afeto. E, certamente, também eu passara por transformações e, devo reconhecer, Gertrud foi uma grande mestra para mim.

 

Para criar um movimento que nos fizesse sair daquele estado de auto-piedade, ainda naquela manhã Tiaguito e eu voltamos ao centro de Burgos, onde eu comprei dois bastões metálicos reguláveis, para apoiar-me ao caminhar. A experiência de outros peregrinos provara que parte do peso da mochila era transferida para os braços e o esforço dos joelhos e tornozelos, aliviado. Também por experiência e conselho de nosso hospitaleiro, eu despachei para Santiago de Compostela tudo aquilo que pudesse ser dispensado. Fiquei surpreso com o peso do pacote: quase dois quilos. Senti-me aliviado, por antecipação. Dever cumprido, passeamos e almoçamos despreocupadamente, antes de voltar ao albergue.

Como eu iria estender minha estada, José Luis tomou-me como seu auxiliar em pequenas tarefas e na recepção dos peregrinos que chegavam. Tiaguito gostou da idéia e fazia vezes de porteiro, franqueando a entrada das pessoas na cabana da administração e recepção. Enquanto o hospitaleiro registrava os peregrinos, eu os levava ao dormitório, lhes indicava os banheiros e dizia dos horários de recolher e de deixar o albergue.

Quando o movimento de chegada dos peregrinos amainou, reencontrei Tony, que em seu passo mais tranqüilo, acabara de chegar. Cumprimentamo-nos com alegria e ele perguntou-me:

“Pensei que você já estivesseem Hotanas. Oque ainda faz aqui?”

“Tendinite! – Respondi e mostrei-lhe a perna inchada. – Fico aqui ainda amanhã, por ordem médica. Mas, quando partir, vou ter menos peso na mochila e dois bastões para auxiliar a caminhada.”

Tony, que também usava bastões, ensinou-me a regulá-los para andar com conforto, tanto em terreno plano, como em subidas e descidas. Enquanto conversávamos, Tiaguito pegou um dos bastões e foi provocar o cão pastor alemão do casal zelador do parque, cuja casa ficava dentro da área cercada do albergue. Em pouco tempo Tiaguito e o animal já haviam se tornado amigos. Quando a dona chamou o cão para passear, Tiaguito a acompanhou. Recolhi o bastão que ele havia deixado caído e observei que ele se encantava ao ver o cão esfregando as costas sobre as folhas caídas das árvores. Num instante, também ele se rolava sobre o tapete amarelado de folhas outonais, imitando o animal.

 

14

 

Na manhã do terceiro dia que estávamos em Burgos, Tony veio despedir-se e expressou o desejo de que voltássemos a nos encontrar. Ele seguia num ritmo mais lento que os demais, mas sempre chegava a seu destino. Raramente cedia ao cansaço provocado por sua doença, da qual só falava em casos extremos, quando precisava de ajuda. Outros peregrinos, entre os quais Bob, também despediram-se de nós.

E novamente, vendo o albergue esvaziar-se, senti a perda de minhas referências humanas do Caminho e de minhas próprias raízes, arrastando-as por onde andava, expostas à céu aberto.

Ao longo da manhã, após as tarefas de organização e limpeza do albergue, fiz uso da Internet para enviar mensagens dizendo que ainda estavaem Burgos. Tiaguitosentou-se a meu lado. Eu o incentivei a escrever ao padre Eduardo para dar conta de nosso progresso. Ele olhou para o teclado sem entender que estranho quebra-cabeças ou sopa de letras era aquele, em nada parecido com o alfabeto ordenado de ‘A’ a ‘Z’ que conhecia. Ainda assim, passado o primeiro espanto e com meu auxílio, ele foi catando letra por letra e compondo seu texto. Vibrou de alegria quando leu que sua mensagem fora enviada com sucesso.

Então, José Luis e eu dedicamos um tempo para conversar, sentados em frente à cabana da administração. Tiaguito zanzava por ali, brincando com sua bola. Num certo momento, nosso hospitaleiro viu e nos apontou um animalzinho, provavelmente um esquilo, que procurava esconder-se sob a cabana que serve de dormitório.

“Deve ter fugido para cá em busca de segurança, pois estamos na estação de caça.” – Explicou José Luis.

Tiaguito correu ao dormitório e voltou com uma das mãos cheia de amendoins, na tentativa de atrair o animalzinho. José Luis sorriu e comentou:

“É mais provável que Tiaguito não tenha sucesso, pois o animal é arisco e no parque há muitas castanheiras, cujos frutos são um alimento apreciado pelos esquilos.”

 

Estar em Burgos foi como estar num remanso do Caminho-rio que, contudo, sabe ser exigente. Eu parecia ouvi-lo sussurrar: ‘Vem, volte a meu leito! Não crie raízes. Desapegue-se e flua com os demais peregrinos’. Só bem mais tarde eu iria compreender que Burgos fora um divisor de águas.

No início da caminhada, eu carregava comigo as pessoas, convenções e problemas com os quais estava envolvido no Brasil. Minha mente ocupava-se deles, torcidos e destorcidos por inconscientes mecanismos. Aos poucos, essas cargas desapegavam-se e perdiam-se nas estradas e trilhas, tangidas para longe, como folhas outonais.

Assim, livre de outros compromissos, andando a pé por lugares ermos e por pequenas vilas, alongava o tempo percebido e diminuía sensivelmente meu ritmo interior, conformando a mente a tornar-se receptiva a explorar novos níveis de consciência.

 

15

Deixamos Burgos na manhã do quarto dia. Ao nos despedirmos de José Luis, ele deu a Tiaguito um cajado de madeira leve, com uma concha entalhada por uma peregrina, que instruíra o hospitaleiro para dá-lo ‘a alguém com coração’. Tiaguito era esse alguém.

Mesmo satisfeito com o cajado, o menino estava irritado por voltar à rotina e, certamente, ainda lamentando a perda de Gertrud. Não dei importância. Ele sabia que podia desistir quando quisesse. Mas, ele também sabia ser decidido e logo mudou de atitude, sorriu, ajeitou sua mochila improvisada e aprumou-se. Fiz-lhe um leve carinho no cabelo, do qual ele se esquivou.

Notei que algo havia mudado em mim, também. Passei a andar mais tranqüilo, admirando melhor a paisagem e parando mais para descansar e observar o movimento das pessoas das vilas por onde passávamos.

Tiaguito divertiu-se quando me viu andando com os bastões e imitou-me, exagerando nos movimentos como fizera em nosso primeiro encontro. Contudo, os bastões mostraram-se úteis já no primeiro dia de uso. A longa e acentuada subida e descida de acesso a Hornillos del Camino, sob uma chuva grossa e intermitente, agitada por fortes rajadas de vento, foi grandemente facilitada pelo uso dos bastões. Um peregrino passou por nós em sentido contrário, certamente voltando em busca de abrigo. Era preciso caminhar com passos firmes e resolutos, para vencer a pressão do vento. Tiaguito usava diligentemente seu cajado e procurava abrigar-se do vento usando-me como escudo. Cansado e contrariado, ele sentou-se numa pedra à beira da estrada, com cara de desgosto. Deixei-o descansar por um tempo para que se reanimasse.

Não nos preocupávamos com a chuva intermitente, pois nossas roupas secavam com o vento e o calor do corpo. Eu protegia meu nariz e a boca com uma toalha por causa do vento e Tiaguito cobriu todo seu rosto com o capuz de seu abrigo, no qual ele havia feito dois furos para os olhos com meu canivete, que ele fazia questão de levar consigo. Meu amiguinho sempre encontrava uma forma de brincar, mesmo em condições adversas. Com o rosto coberto, fazia-se de cavaleiro medieval. Trotando e usando o cajado como uma lança em riste e investia contra cavaleiros fantasmas, tomado de fértil imaginação.

O sopro furioso do vento parecia querer represar as águas peregrinas, testando-lhes o ânimo e a determinação. A paisagem à nossa volta parecia um deserto, pois os campos estavam ceifados e queimados e havia poucas árvores à vista. A curva ao final de uma subida apenas escondia nova subida e insinuava nova curva, numa interminável seqüência que fazia o vento gargalhar de odioso prazer.

 

Então, já mais próximos de Hontanas, pela primeira vez vimos peregrinos a cavalo. Um deles, vendo nossa dificuldade em avançar, ofereceu-se para levar Tiaguito até ao albergue.

Só, eu deixava meus pensamentos caírem na estrada. Alguns apagavam-se e logo eram esquecidos; outros, rolavam à deriva, até acomodarem-se à paisagem, à espera de outra mente que os acolhesse. Mas havia pensamentos que se prendiam às pedras, aos moirões, às poucas árvores e, no entanto, ainda agarrados a mim, estiravam-se até romperem, atrasando a chegada do próximo pensamento e restringindo-me o passo.

Enfim, à tardinha, também eu cheguei a Hontanas, pequena como o vale em que está encravada e que a abriga dos fortes ventos outonais. Eu estava cansado: não apenas o trecho fora longo, como eu tivera de lutar contra a insanidade do vento, a chuva intermitente e a insistente carga de pensamentos.

 

 

Sem haver muito o que ver na vila, deixei-me ficar no albergue, descansando e aproveitando para enviar mensagens pela Internet dizendo que havia voltado ao Caminho e onde estava. Era-me confortador saber que minha família acompanhava minha progressão pelo Caminho no mapa que eu havia lhe deixado. Tiaguito fez questão de escrever ele mesmo uma mensagem para o padre Eduardo, que eu complementei rapidamente.

 

16

 

O vento insone e infatigável ainda soprava forte pela manhã,em Hontanas. Já a caminho, diminuímos o passo para admirar por uns instantes o Convento de San Antón, de estilo gótico, construído no século XIV, cujas ruínas dão testemunho de sua magnificência. Logo após Castrojeriz, porém, vimos que teríamos que subir uma montanha – o Alto de Mostelares – por uma íngreme estrada de terra e cascalho. Tiaguito não parecia satisfeito. Paramos e lhe escrevi um bilhete: ‘Vamos voltar a Castrojeriz e tentar encontrar alguém que possa levá-lo a Boadilla del Camino’. Ele pensou um pouco, olhou para a montanha e para mim.

“Eu continuo a pé e nos encontramos em Boadilla del Camino.” – Falei e gesticulei apontei um dedo para a localidade desenhada no mapa do guia. Ele aceitou e retornamos. Entramos num bar e, enquanto tomávamos café, expliquei ao dono o que ocorria e mostrei-lhe o documento do padre, autorizando Tiaguito a viajar comigo. Enquanto lia, o homem olhava ora para mim e ora para Tiaguito, buscando confirmar a veracidade do documento.

“Aquele homem ali – disse o dono do bar, apontando – é um de meus fornecedores e vai passar por Boadilla del Camino. Fale com ele, talvez ele possa levar o menino.”

Não foi necessário repetir. O homem havia escutado nossa conversa.

“Deixe-me ver a autorização do menino. – Solicitou, estendendo a mão; leu-a e continuou:  – Posso levá-lo, sim. Mas vou fazer ainda várias entregas, antes de chegar a Boadilla…”

Olhei interrogativamente para o dono do bar.

“Sem problemas!, se ele diz que leva o menino é porque vai deixá-lo onde você quiser…”

Agradeci a ambos e pedi ao motorista que deixasse Tiaguito o mais próximo possível do albergue. Escrevi um bilhete ao menino, esperei que ele concordasse e despedi-me. Então voltei à estrada para enfrentar a subida à montanha.

De passagem por Itero dela Vega, ouvi o canto dos fiéis reunidos na igreja para a missa do meio-dia. Como maior parte das igrejas das vilas abre apenas em horários pré-determinados, tive a curiosidade de conhecer a igreja local. No entanto, o padre e os fiéis haviam trancado a porta para não serem interrompidos em suas orações por peregrinos de passagem e, assim como eu, mais curiosos que devotos. Perdão!, havia dois ou três peregrinos junto à porta em atitude de devoção, acompanhando a cerimônia e fazendo coro aos cânticos e orações.

Igualmente raro foi encontrar uma tienda (armazém) aberta num domingo. Dirigi-me para lá e pedi ao vendeiro que me preparasse um sanduíche, enquanto eu me acomodava sobre um caixote vazio. Mulheres da vila, ausentes da igreja, vinham às compras e faziam rápidos comentários entre si. O vendeiro sorria ao ouvir o repicar das moedas em sua caixa registradora, contestando o repicar dos sinos da igreja que anunciava o final da missa.

Então, eu segui sem outras dificuldades que não fossem a distância, o vento e a chuva intermitente. Em Boadilla del Camino, Tiaguito escolhera um albergue particular, por conta própria. O menino tinha bom gosto e gosto pelo conforto.

 

Embora muitos peregrinos prefiram andar a sós e em silêncio durante o trajeto, nos albergues são extremamente gregários, trocando palavras sobre suas alegrias, descobertas e mazelas do dia e sobre suas origens, interesses e objetivos. Com freqüência, formam grupos para preparar seu jantar ou vão a algum bar-restaurante para confraternizar em torno de algumas taças de vinho ou de cerveja, enquanto jantam.

Assim que cheguei, Tiaguito levou-me para conhecer Dudu (Eduardo), nosso hospedeiro. Simpático e solícito, disse ser apreciador da música e do futebol brasileiros e mostrou com satisfação suas lembranças da viagem que fizera ao Brasil.

Ali também conheci Luciano, um peregrino italiano. Iniciamos falando banalidades, ele em italiano e eu,em espanhol. Atentosem nos entender mutuamente, íamos avançando nossa conversa como quem avança entre trincheiras, de um assunto a outro, até chegarmos a Giuseppe Garibaldi. Eu falei com entusiasmo da participação dele na Guerra dos Farrapos, no extremo sul do Brasil, no início do século XIX. Garibaldi contribuíra de modo decisivo como estrategista e comandante da pequena frota naval farroupilha.

Luciano desconhecia a epopéia de Garibaldi no Brasil e falou, então, da campanha da unificação da Itália, da qual este também fora um dos grandes protagonistas. E concluímos que, por caminhos diferentes – no Brasil, por uma causa separatista; na Itália, pela unificação – Garibaldi tornara-se herói em ambos os países.

Satisfeitos com nossa conversação, unimo-nos a outros peregrinos para jantar. Nossa mesa era composta por um casal francês, dois italianos (Luciano era um deles) e uma espanhola, que falavam apenas seu próprio idioma. Além desses, havia Michel, suíço, que falava italiano, francês, alemão e inglês; eu, que falava português, inglês e espanhol e, completando a mesa, Tiaguito. Quando eu e Michel falávamos, o fazíamos inglês, então ele traduzia para o francês e o italiano e eu, para o espanhol. Quando os franceses falavam, Michel traduzia para o inglês e eu repassava a fala à peregrina espanhola, enquanto ele traduzia para os italianos. Se a espanhola quisesse dizer alguma coisa, dirigia-se a mim, que traduzia para Michel, em inglês, e ele traduzia para o francês e o italiano. Mais simples, impossível! E ainda sobraram o alemão e o português, por falta de interlocutores.

Unidas por todos os assuntos e interesses possíveis, assim são as águas peregrinas. Vindas de muitos e diferentes afluentes, confraternizam nesta Babel redimida que as faz comunicarem-se e entenderem-se em todos os idiomas.

 

17

 

De Boadilla del Camino, em pouco mais de uma hora de caminhada, chegamos a Frómista, onde fizemos uma rápida parada para admirar a bela igreja de San Martín. De estilo românico,  ela é um marco importante da cidade e do Caminho e bastante apreciada pelos peregrinos, que a circundavam procurando diferentes ângulos para fotografá-la e filmá-la.

De Frómista, seguimos sem incidentes até Carrión de los Condes, um caminho fácil porém demasiadamente monótono, plano e deserto. Até mesmo o vento e a chuva deixaram de percorrê-lo e nos deram trégua.

 

Porém, por várias vezes, Tiaguito demonstrou grande marasmo e apatia, que levaram-se ao limite da impaciência; a cada pequena vila que chegávamos, ele pedia para descansar e demorava-se a decidir a continuar. Contive-me porque também eu sentia-me cansado e desiludido com a monotonia daquele trecho e ter alguém por companhia ainda era melhor que entregar-se ao completo desânimo A duras penas, enfim chegamos a Carrión de los Condes.

Carrión de los Condes situa-se a quatrocentos quilômetros de Santiago de Compostela, fato importante para mim: eu estava a meio caminho de minha peregrinação. Eu já não sofria com o peso da mochila e as bolhas desistiram de mim desde que eu saíra de Burgos, utilizando os bastões. Eu sentia-me em boa forma para continuar. Tiaguito, porém, parecia cansado e desanimado. Já não mostrava o mesmo entusiasmo em suas brincadeiras e deixava-se ficar na cama, preguiçoso e pensativo. Quando aproximei-me dele, virou-se de costas, dando a entender que queria ficar só. Como em todos os albergues onde pernoitávamos, também neste, Tiaguito procurou ansiosamente pelo nome de Gertrud nos registros de peregrinos, sem sucesso. ‘Ele deve estar sentindo a falta dela – pensei – mas, também isso passa’.

 

De quando em quando, os peregrinos despedem-se uns dos outros para o caso de não se reverem. É, porém, uma despedida que tem raízes na esperança de um caloroso reencontro. Mesmo intuindo que não mais veríamos Gertrud, eu não a descartara simplesmente: ela continuava viva e presente em minha mente e em meus sentimentos, embora em silencioso e paciente segundo plano. Eu sentia gratidão por ela a cada momento em que dela recordava, mas não nutria a semente da saudade no fértil terreno do apego. E a crer no que ela dissera em Pamplona – ‘Eu fugi. Eu precisava fugir deles todos’ – talvez nem fosse esse seu nome, que assumira uma outra identidade: a fugitiva Gertrud. Sendo assim, de nada serviria procurar por ela nos livros de registro dos albergues.


18

 

Pela manhã, Tiaguito acordou sem vontade de acordar. Levantou-se sem vontade de levantar. Seguiu comigo sem vontade de seguir.

Ao contrário das previsões, o sol dormia num colchão de nuvens e o vento soprava frio e insensível. A paisagem mudou por completo tão logo saímos de Carrión de los Condes. Tudo que o horizonte nos mostrava era um descampado raso a perder de vista. Parei, como que chocado. Tiaguito mostrou-se ainda mais desanimado e gesticulou aflito, dando a entender que nada havia ali, que tudo era muito vasto e que não queria irem frente. Porgestos e por palavras, eu lhe disse:

“Eu vou adiante. Você vem comigo?” – E reiniciei a caminhar, num passo mais lento. Não ouvindo ruído que denunciasse que ele me seguia, parei e olhei para trás. Ele demonstrava seu desânimo curvando o corpo e a cabeça e deixando cair os braços. Parecia mais decepcionado que pensativo. Toquei-o no braço e disse:

“Quem sabe é melhor eu seguir sozinho?” – Ele não pareceu entender. Escrevi a pergunta. Ele leu e acenou a cabeça afirmativamente: ia desistir.

Voltei com ele a Carrión de los Condes e comprei uma passagem até Los Arcos, onde o padre Eduardo iria buscá-lo, conforme combinamos por telefone. Coloquei em sua sacola um sanduíche e algumas barras de cereais e chocolate. Dei-lhe todo o dinheiro que pertencia a ele e escrevi-lhe um bilhete comunicando as instruções dadas por seu padrinho. Estendi-lhe a mão para despedir-me, ele puxou-me para baixo, fazendo-me ajoelhar, e me abraçou rapidamente.

Imóvel e triste, fiquei a ver o menino sumir no interior do terminal rodoviário. Estaria eu lamentado a situação de Tiaguito ou lamentando a mim mesmo pela perda do pequeno amigo? Levantei-me e segui meu caminho, perscrutando em vão o horizonte em busca de outro peregrino que pudesse alcançar e tomar por companhia.

 

Um sentimento de desalento corroia-me a alma, tornando incerto meu ritmo. O vento havia amainado e trazia um forte cheiro de terra molhada. Respirei fundo por diversas vezes e acelerei o passo, pois a paisagem monótona parecia estender-se até o infinito e por toda a eternidade.

Minha mente ainda estava presa a Tiaguito. Ele não ficara para trás, pois eu o carregava comigo, ora com tristeza pela perda, ora com alegria por ter tido o privilégio de ter convivido com ele. Mas, à sombra do menino que eu aprendera a amar, eu entrevia um outro Tiaguito, este como uma metáfora da criança que fui e que se perdeu, não porque me tornei adulto, mas porque foi precocemente sufocada pelo sopro tóxico das convenções sociais. Uma criança que não me fala nem me ouve, mas que se dá a entender e amar. Inocente, vive um dia de cada vez, desprezando as amarras do passado e sem antecipar o futuro, capaz de encarar o mundo tal como ele se apresenta. Enfim, a criança-arquétipo, a pedra fundamental de meu projeto de reconstrução.

 

Não me lembro de quanto andei nem por quanto tempo minha mente divagou…. Quando dei-me conta, Tiaguito estava a meu lado, ofegante de tanto correr, como se jamais tivesse tido qualquer vacilo. Apenas nos olhamos e sorrimos, compartilhando nossa emoção, felizes que ele tivesse desistido de voltar a Luquin.

A chuva intermitente e o vento frio voltavam a nos fazer companhia. Tudo o que se via ao longe era a estrada a perder-se de vista. De repente, escondida por uma leve depressão, lá estava Calzadilla dela Cueza, onde almoçamos e de onde voltei a telefonar ao padre Eduardo, comunicando-lhe a mudança de planos. Mal saímos à rua, para continuar nossa caminhada, o sol nos aguardava sorridente e malicioso e o vento diminuíra sua intensidade.

A estrada esticava-se plana e reta como um tapete por onde deslizávamos. Ignoramos Terradillos de Templários e fomos pernoitarem San Nicolasdel Real Camino, antecipando em alguns quilômetros a caminhada do dia seguinte.

No albergue, enquanto degustava uma grande e inspiradora caneca de cerveja em comemoração ao retorno de Tiaguito, conectei-me à Internet por longo tempo. Enviei mensagens detalhadas de minhas impressões sobre o Caminho e de meu entusiasmo por estar bem de saúde e com grande disposição. Deixei que o próprio Tiaguito se explicasse ao padrinho em mensagem que enviou com minha ajuda.

 

Algumas mensagens que eu havia recebido davam conta de expectativas de familiares e amigos de que o Caminho provocasse profundas mudanças em mim. Àquela altura, eu já tinha consciência de que eu não poderia atendê-las e resolvi desfazer-me desse tipo de pressão psicológica. Assim, antecipando-me no tempo, fiz minha defesa prévia pela Internet, alertando para o fato que eu não formulara nem um único objetivo de mudança pessoal intencional e nem aceitara ou aceitaria expectativas alheias. Era mais uma carga que eu abandonava e deixava para trás.

 

19

 

Para chegar a El Burgo Ranero passamos por Sahagún, onde encontramos um grupo de peregrinos brasileiros com os quais já havíamos convivido antes. Entre eles estavam Josefa que eu conhecera em Burgos e a argentina Maria, esta sempre a puxar suas mochilas sobre rodas. Tiaguito fez questão de encarregar-se da bagagem de Maria, arrastando o carrinho como se fosse um brinquedo. Parecia satisfeito com sua decisão de continuar o Caminho. O grupo avançava devagar, uma vez que tanto Josefa quanto Maria sentiam fortes dores nas pernas. Despedi-me e eu e Tiaguito apuramos o passo.

Em El Burgo Ranero, à noite, Tiaguito distraiu-se com os números de mágica feitos por um dos peregrinos, que também usava balões para confeccionar animais, flores, estrelas e outras formas. Muito agilmente ele soprava, dobrava, puxava e torcia o balão, até conseguir a forma desejada. Todos olhávamos admirados sua habilidade. Tiaguito foi brindado com vários desses trabalhos que estourou um a um, incentivado por todos.

Maria e Josefa haviam chegado com algum sacrifício ao mesmo albergue em que estávamos. Ao saber que ambas iriam para León de ônibus, em busca de descanso e tratamento, pedi-lhes que levassem Tiaguito com elas, pois o trajeto do dia seguinte – superior a trinta e sete quilômetros – era longo demais para ele. Minha decisão pareceu contrariar o menino e tive de argumentar muito com ele por escrito e mostrando-lhe o mapa do guia, até que concordasse. Dei-lhe dinheiro suficiente para a passagem e a alimentação e disse-lhe para aguardar-me no albergue do monastério beneditino.


20

 

Acordei de madrugada e, insone, decidi tomar a estrada, rumo a León. Ainda não eram bem cinco horas quando deixei o albergue sem ao menos despedir-me de Tiaguito. Para não acordá-lo, deixei-lhe um bilhete.

O vento soprava frio na planície quase desprovida de árvores. Eu protegia o rosto com uma pequena toalha e as mãos com meias, como luvas. Estava escuro e vi-me envolto por um manto de estranhas estrelas que observava fascinado, sem encontrar naqueles infinitos pontos brilhantes correspondência alguma com o céu de meu País. A escuridão franqueava-me a trilha sempre alguns metros à frente, para logo tragá-la quando eu acabava de passar.

De vez em quando passava um trem de carga pela ferrovia que ali corre paralela à trilha. Eu caminhava num ritmo acelerado quando, distraído a observar mais um trem que passava, bati com violência minha canela direita num dos marcos de concreto do Caminho. Graças aos bastões, consegui reequilibrar-me sem cair. Fôlego suspenso, sentei-me no marco, esperando a dor passar. À minha volta, eu literalmente via estrelas, pensei com humor, consolando-me do acidente. Não dei muita importância ao fato e continuei, certo de que mantendo o calor do corpo, a dor se extinguiria e tudo voltaria ao normal.

Eu já estava andando havia mais de duas horas quando ouvi o piar de um pássaro, talvez acordado pelo primeiro trem de passageiros que passava. Pouco depois, a trilha desenhou uma curva para a direita e deslizou por debaixo de um viaduto ferroviário, orientando-me para o oeste e afastando-me da linha férrea. Neste exato momento, atrás de mim anunciavam-se os primeiros clarões do dia, transformando as informes manchas do horizonte à minha frente em estrada, campos ondulados, árvores e pássaros. Um bando de três ou quatro corvos crocitava e exercitava suas asas num vôo rasteiro, desprovido de graça e sombrio.

 

Fiz minha primeira parada em Reliegos, para descansar e tomar meu jejum no único bar da vila. Apesar da dor na perna acidentada, eu era distraído por pensamentos que me vinham em grande intensidade.

No início da caminhada – ainda em Saint-Jean-Pied-de-Port e por vários trechos depois -, eu gerava pensamentos superficiais sobre como atender às necessidade mais imediatas: alimentação, albergue e convívio com os outros peregrinos. Aos poucos, mais seguro, senti uma natural curiosidade pelos lugares pelos quais passava e pelas pessoas com quem me encontrava. A curiosidade deu lugar à observação mais detalhada e esta, à atenção, aprofundando o aprendizado com pessoas, lugares e situações. A contemplação veio depois, livre, plena e intensa. Por último, vieram a reflexão e a meditação.

Nos trechos em que minha mente não se ocupava com a presença de Tiaguito, eu tornava-me mais contemplativo, reflexivo e aberto ao novo, encantando-me com as surpresas do dia-a-dia e permitindo-me mergulhar em estados mais profundos de consciência, tendo já então a mente esvaziada de entulhos e encargos, recentes ou acumulados desde longa data.

Já havia dias eu havia aprendido a estar só, com meus pensamentos. Mas naquele momento, eu sentia estar realmente só, sem pensamentos. Tomar consciência do fato, mesmo que por um breve instante, trouxe-me a compreensão de que, à medida em que deixava pelo Caminho a carga que pesava sobre os personagens que eu pensava ser, os papéis que eu representava foram perdendo importância. Até então ia de uma vila à outra por inércia mental. Aos poucos, do esvaziamento da mente foi emergindo um ser autêntico, livre da rigidez dos papéis sociais. O ator saía de cena, dando lugar ao agente de seu próprio destino. Entendi que, paradoxalmente, quando diminuímos os excessos de que somos feitos, tornamo-nos maiores.

Dessa forma compreendi que a analogia do rio aplicava-se a mim, também. Lembranças estagnadas libertaram-se, renovaram-se e fluíram em direção ao rio de minha vida, unindo e integrando os passados estanques, dando-lhes atualidade e vida.

Elas, minhas lembranças, não se apresentavam como resultado de uma escavação arqueológica, exigindo esforço, método e paciência. Estavam sempre presentes e vinham como páginas de um livro, que eu podia acessar a qualquer momento. Sentia que meu passado não ficara para trás, guardado em algum arquivo descartado. Tive a convicção de que meu passado é meu presente e é meu futuro. O passado é a base que me alicerça; não posso esquecê-lo nem destruí-lo, sem que eu próprio me esqueça ou destrua. O futuro, eu o podia vislumbrar em linhas gerais, com a mesma esperança – quase certeza – daquele que aguarda a colheita, após ter preparado a terra e nela semeado.

No entanto, a cortina do esquecimento corria sobre as horas e dias mais recentes. Haveria forma de fazê-la recuar ou de erguê-la aqui e ali, mesmo que por breve instante, ou tudo estaria definitivamente perdido? Por que não conseguia lembrar do lugar de onde saíra pela manhã ou passara ainda há pouco ou para onde deveria ir? Por que tantas pessoas, fatos e experiências só mantinham-se presentes porque agarradas às letras que eu rabiscava em meu bloco de notas? Por que a imagem de Gertrud, antes tão presente, dissolvia-se nas brumas do passado?

Era como se o Caminho impedisse que eu criasse raízes ou apegos e, me parecia, ouvia-o sussurrar: “Não pergunte ‘e, se fosse diferente?’ ou ‘como seria se…?’. Deixe-se fluir, numa entrega absoluta ao presente”.

 

Eu estava de passagem por Arcahueja, quando entrei num bar para comprar suco de frutas. Paguei e perguntei ao dono do bar:

“Posso usar uma de suas mesas, lá fora, para comer meu sanduíche?”

“Por que lá fora? Fique aqui, que está menos frio.” – Sugeriu ele apontando-me as poucas mesas do pequeno estabelecimento.

Agradeci, depositei minha mochila no chão e sentei-me a uma mesa afastada da entrada. Um cliente alimentava de moedas uma ruidosa máquina caça-níqueis, chutando-a e xingando a cada moeda desperdiçada. Nos intervalos entre uma moeda e outra, ele tomava rápidos goles de cerveja, como que para repor energias para o próximo embate com a máquina. O dono do bar balançava a cabeça em tranqüila indiferença.

Minha perna doía muito e eu precisava avaliar o machucado. Tentei ser discreto ao tirar a bota, mas a troca de sorrisos entre o taverneiro e o outro cliente mostrou que meu gesto não passara desapercebido. Minha canela direita, próximo ao tornozelo, estava bastante inchada e ainda latejava. Ainda assim, eu tinha esperança de chegar a León sem problemas.

Aproveitei o tempo para escrever minhas impressões e reflexões sobre a jornada. Surpreso, vi o dono do bar agraciar-me com petiscos de frango, batatas fritas, uma fatia de pão e um largo sorriso. Então vi sua esposa, que me olhava da porta da cozinha; ela acenou levemente a cabeça e uma das mãos e sorriu. Fiquei comovido com o gesto de solidariedade, como tantas vezes me comovera ao longo do Caminho. Em algum lugar, alguém oferecera frutas; noutro, caramelos; adiante, antes do amanhecer, um casal de garis desejara-me ‘¡Buen camino!’; outro dia, um carro de luxo passou, buzinou e crianças acenaram, felizes em ver um peregrino; em todos os lugares, e sempre, haviam pessoas dispostas a informar corretamente.

 

Cheguei a León após mais de oito horas de sofrida caminhada. Minha perna direita latejava e eu também sentia os efeitos de ter madrugado. Fui direto ao albergue do mosteiro beneditino, onde deveria encontrar Tiaguito. Apresentei-me à recepção. O hospitaleiro falava animadamente com duas mulheres; apesar de ter-me visto não tomou conhecimento de minha presença, como se fosse inoportuna. Esperei por um bom tempo, até que ele se dignasse a perguntar se eu queria passar a noite ali. Respondi afirmativamente, enquanto tentava alcançar-lhe, em vão, minha credencial de peregrino. Passados mais de dez minutos, minha irritação tornava-se proporcional ao cansaço e à dor que sentia. Já estava pensando em procurar outro albergue, quando fui socorrido por uma hospitaleira voluntária que se identificou como Ann, finlandesa.

“O senhor parece cansado… Vai hospedar-se aqui?”

“Sim, estou realmente cansado! Venho de Burgo Ranero, de onde saí às cinco da manhã e estou com uma perna machucada.” – Informei, mais acusativo que queixoso, manifestando minha insatisfação com a fria acolhida.

Ann pediu que as mulheres saíssem da sala e que o hospitaleiro me atendesse e informou-me, solícita, sobre os serviços que o albergue dispunha. Sentindo-se repreendido, o homem não foi nada simpático comigo; eu pouco me importei, afinal tinha uma aliada, a quem agradeci.

Após o banho, saí para conhecer León. Fosse a catedral sua única atração, a cidade mereceria ser visitada. Embora sua arquitetura exterior não seja tão imponente quanto a de Burgos, estar em seu interior é como ser transportado para dentro de uma jóia de incontáveis facetas, lapidadas com ciência e arte: seus vitrais são como pedras preciosas e multicoloridas, harmoniosamente incrustadas em seus delicados arcos góticos. De tão fascinado eu mal respirava, deixando-me banhar nos variados efeitos de luz e cor, que eu sentia penetrarem até o âmago de meu ser. Em meu enlevo já não sabia se o recinto era sagrado por ser um templo ou se era um templo por ter sido sagrado por tão elevada arte…

Eu havia chegado próximo ao altar-mor quando vi Tiaguito ajoelhado, o olhar voltado para o altar e as mãos postas. O rosto iluminado pelo colorido dos vitrais tinha uma expressão serena e confiante. Vendo-o à meia-luz naquele ambiente de misteriosa alegoria mística, senti-me tocado por uma profunda experiência de espiritualidade: que Deus se fazia presente no templo, em Tiaguito e em mim.


21

 

Na manhã seguinte, estávamos tomando nosso café, servido por Ann e por outra voluntária, quando o hospitaleiro me convocou à sala de recepção. Sem rodeios disse que já sabia de nós – de mim e de Tiaguito – e manifestou seu desagrado em ver um menino acompanhar um adulto e estrangeiro. Frisou bem a palavra estrangeiro.

“Tiaguito tem um tutor legal que o confiou a mim, até Santiago de Compostela.” – E lhe mostrei a carta do Padre Eduardo.

“Não creio que o bom padre tenha noção dos riscos que corre ao entregar o menino a um estranho. Vou retê-lo aqui, em nome da decência, até que o padre Eduardo venha buscá-lo.” – Afirmou em tom quixotescamente autoritário, devolvendo-me a carta, lida sem atenção.

Aflito, eu remoia-me de raiva por minha impotência. Perder Tiaguito já era difícil, perdê-lo por uma ação prepotente, era desesperador.

Nossas vozes alteradas chamaram a atenção dos outros peregrinos, dos quais a maior parte também era estrangeira. Comentavam, à voz pequena, do absurdo da situação e solidarizaram-se comigo.

Tiaguito percebeu que nossa conversa lhe dizia respeito; prevendo algo de ruim, espiava-nos da porta. Ann quis intervir. O hospitaleiro disse-lhe que o assunto não era de sua competência e que ela voltasse ao refeitório. Também ela estrangeira, calou-se. Os outros, sem saber o que fazer, foram deixando o albergue. Junto com eles, ia minha esperança de solucionar o impasse.

Um telefone tocou. Sim, era isso! Ansioso, pedi a Tiaguito que me aguardasse. Saí em busca de um telefone público e liguei para  o padre Eduardo para comunicar o ocorrido.

“Padre, estamosem León. Ohospitaleiro do albergue quer reter Tiaguito aqui, até que o senhor mesmo venha buscá-lo.” – Falei, desesperado.

“Mas por que? Com que direito?”

“Ele alega agir em nome da decência e que o senhor não sabe dos riscos a que expõe o menino ao deixá-lo viajar comigo.” – Respondi.

“Acalme-se e não crie mais problemas para si; eu vou resolver a situação.”

 

Enquanto eu aguardava junto ao portão do mosteiro, minhas emoções galopavam perigosamente, rompendo em diferentes direções. Prepotência e impotência alternavam-se como subidas e descidas de uma montanha russa. A prepotência alimentada por pensamentos de raiva e de vingança. A impotência, por pensamentos de submissão e covardia. Senti que meu corpo reagia às emoções: a respiração havia se tornado curta e difícil, meus ombros estavam tensos e caídos e a gastrite, seqüela de batalhas já esquecidas, voltava à vida.

Observando meu monólogo mental, percebi que não era eu que criava e organizava esses pensamentos, mas que eles pareciam ter vida própria. Pensamento após pensamento, eles iam se encaixando tal qual peças de um quebra-cabeça, ajustando-se por afinidade até formar uma imagem final que se cristalizava em minha mente e à qual eu regia emocionalmente.

O tempo passava e eu seguia tendo presente a imagem da montanha russa na qual, por fração de segundos, eu passei a perceber algo diferente. Era como se na primeira subida, a que dá impulso a todas as demais, houvesse um momento de lucidez, um aviso de alerta, indicando que eu poderia suspender a seqüência que viria a seguir: o sobe-e-desce de emoções. No entanto, aqueles momentos de lucidez escapavam-me um após outro e o ciclo voltava a iniciar-se e a completar-se. Mas aquele sinal de alerta, uma vez que eu o havia percebido, atraiu minha atenção e foi se tornando mais intenso, até que a velocidade de alternância dos pensamentos e emoções foi gradualmente reduzida. Na mesma proporção, meus momentos de lucidez aumentaram, até que minha mente silenciou. Então já não havia mais raiva nem desejo de vingança; não havia mais submissão nem covardia. Eu estava vazio de pensamentos e de emoções.

Deixei-me invadir por essa sensação de paz, nova para mim. E várias lembranças de eventos passados apresentaram-se à minha mente e neles percebi que breves momentos de lucidez – o aviso de alerta – estiveram presentes e eu, então, os deixara passar sem dar-me conta deles. Porém, agora que os havia experimentado, que deles eu tomara consciência, decidi-me a estar atento a seu menor sinal e a responder positivamente a suas novas ocorrências.

 

Tão absorto estive que perdi a noção do tempo, voltando a mim ao sentir-me abraçado por Tiaguito. Retribui ao abraço com intensidade, antes de perceber a presença da Madre superiora do monastério.

“Tudo está resolvido; Tiaguito pode ir com o senhor, sem mais problemas. – Disse ela, fazendo um carinho na cabeça do menino. Ele retribuiu beijando a mão direita da freira, já acenando adeus, como que a temer nova encrenca. – ¡Buen camino, peregrinos!” – Acrescentou ela, ao fechar o portão. Minha emoção não permitia que eu lhe agradecesse por palavras, então apenas acenei.

 

Não foi fácil sair de Leon, pois os sinais do Caminho eram muito discretos. O vento que nos fustigava havia dias soprava frio e intenso. Tiaguito havia puxado sua toca sobre o rosto e olhava divertido pelos buracos que havia feito. Suas mãos, assim como as minhas, estavam enfiadasem meias. Emboranada elegantes, mantinham nossas mãos aquecidas. Nenhuma das vilas por onde passamos naquele dia tinha qualquer atrativo histórico ou estético. Eu sentia fortes dores na canela direita, a que havia batido na madrugada anterior. Em Villadangos del Páramo, comprei uma pomada anti-inflamatória de efeito rápido e o apliquei sobre o hematoma, o que permitiu-nos finalizar o trajetoem San Martíndel Camino.

 

Chegamos cedo e, Tiaguito, fugindo do banho, saiu pela vila a procurar por outros garotos. Fui encontrá-lo mais tarde jogando futebol totó com outros três garotos, protegidos pela sombra da marquise de um bar. Tão concentrados estavam, movimentado agilmente os bonecos, defendendo e chutando a gol, que nem me notaram quando parei por uns instantes a apreciar o jogo. Tiaguito só voltou ao anoitecer, exultante. Ao que parece ele e o parceiro ganharam a maior parte das partidas. Eu o admirava por superar com tanta naturalidade suas limitações e conquistar as pessoas à sua volta. Antes de deitar, fiquei observando-o, já dormindo, a me perguntar que razões o levavam a fazer o Caminho de Santiago de Compostela, propósito certamente incomum entre crianças de sua idade. Jamais lhe perguntei e ele jamais imaginou que eu pudesse querer saber. Eu só tinha uma pista, revelada pelo padre Eduardo: ele tinha um pedido a fazer ao santo.

Tiaguito e eu não passávamos mal. Além de pararmos a cada duas horas para descansar e tomar algo, sempre tínhamos conosco frutas, barras de cereais ou de chocolate. A cada três ou quatro dias, éramos procurados no albergue por algum dos amigos de padre Eduardo, trazendo-nos dinheiro para cobrir as despesas do menino. As quantias quase sempre eram constrangedoramente maiores que o necessário. Mas era impossível recusar. Que ao final eu prestasse contas ao padre, diziam.

 

22

 

Em Hospital de Órbigo, no trajeto que nos levou a Astorga, apresentou-se a nós um peregrino, dizendo ser húngaro e chamar-se Tamás. Enquanto caminhávamos pela rua central da vila, ele choramingava, puxando um carrinho com suas bolsas de lona.

“Eu fiz o Caminho há vinte anos, de bicicleta. Agora, vou a pé pois não tenho mais forças para pedalar. – E, assumindo um papel de quem não está bem, acrescentou: – Só consigo avançar dez quilômetros por dia, por isso meu dinheiro praticamente acabou e agora vivo de caridade, tanto para comer como para dormir. Só me restaram dois euros, que nada são diante de minhas necessidades.”

Ele falava uma mistura de italiano e espanhol com uma ênfase pegajosa e irritante.

“A caridade cristã acabou, nem mais os padres dão esmola aos pobres. Hoje, até para visitar as igrejas, os fiéis tem de pagar ingresso. A religião tornou-se um comércio, como outro qualquer.”

Tiaguito deu-lhe um de nossos sanduíches e algumas moedas de centavos que tinha consigo. Despedimo-nos e apuramos o passo, enquanto o húngaro ainda resmungava suas queixas. Ao olhar para trás, vi que contava com desprezo as moedas e o sanduíche ele já havia deixado no peitoril de uma janela.

A subida após Santibañes de Valdeiglesias não é muito acentuada, mas um vento forte, acompanhado de chuva, dificultou nosso avanço. Para vencer a resistência, eu tinha de dobrar-me para frente e apoiar-me nos bastões. Tiaguito protegia-se atrás de mim, segurando uma das alças de minha mochila e fazendo uso de seu cajado para firmar-se. Fizemos uma paradaem San Justodela Vega, vila próxima de Astorga, para tomarmos fôlego e aquecermo-nos com café e leite. Finalmente, vencemos os últimos três quilômetros sem problemas.

 

Ao longo do Caminho de Santiago de Compostela nos é mostrado o quanto a Espanha é rica em heranças de uma épocaem que Deuse César eram faces de uma só moeda. Uma épocaem que Igrejae reis sentavam-se à mesma mesa e bebiam do mesmo cálice. São testemunhas disso castelos, palácios e majestosas igrejas, catedrais e monastérios, cujos santos e altares são recobertos de ouro.

Dedicada à Santa Maria, a catedral de Astorga é um exemplo dessa herança. Construída ao longo de trezentos anos por gerações de pacientes e desprendidos artesãos, sua arquitetura é uma síntese de estilos: gótico tardio, barroco e néo-clássico. Ereta, em majestosa postura, ela aguarda os fiéis para mostrar-lhes histórias sagradas no retábulo de rara beleza do altar principal, finamente esculpidas e emolduradas em painéis dourados e lavrados com arte. Não menos artísticos são os relevos entalhados dos assentos do coro, feitos em sólida madeira escura, representando grande diversidade de santos, profetas, anjos e florões, que não se repetem uma só vez. Assim como a catedral de León, esta também nos convida mais à contemplação que à oração, mais ao êxtase que ao recolhimento.

Ali próximo, uma outra pérola de arte, esta do século XIX. Projetado por Gaudí, o palácio episcopal é uma síntese de passado e futuro, um misto de sagrado e profano, uma fantasia construída em pedra.

 

Não sei por quais caminhos passou o peregrino húngaro, mas ele havia chegado antes de nós a Astorga. Voltamos a encontrá-lo num albergue, onde ele tentava convencer a bela recepcionista de que era muito pobre e que não tinha como pagar o pernoite. Em apuros, a moça sugeriu-lhe que fosse ao albergue municipal, pois aquele em que estávamos era particular. Ou por tê-la convencido, ou por tê-la pago, Tamás acabou por ficar e, afinal, revelou-se um bom proseador. Deu mostras de conhecer grande parte da Europa e expressava-se em vários idiomas, enquanto comia iguarias que os outros peregrinos não se davam ao luxo de adquirir.

Sem prestar atenção ao que dizia, mas sim ao processo de comunicação em si, dei-me conta de que os peregrinos misturam habilmente idiomas de diferentes cores e texturas para compor a graciosa renda da comunicação que os irmana.


23

 

Ao sairmos de Astorga, já amanhecendo o dia, nuvens derramavam-se sobre as montanhas ao longe como uma cálida coberta de flocos de lã. Percebi que ficaram para trás as imensas planícies em que ares outonais pintavam desertos de aquarela. A paisagem mudava gradativamente e entravam em cena montanhas cobertas de matas cada vez mais abundantes, que os mesmos ares outonais borrifavam aqui e ali de amarelo.

Juntamo-nos a dois peregrinos espanhóis – Luis e Carlos, pai e filho -, que nos convidaram a visitar Castrillo de Polvazares, patrimônio histórico da humanidade. A vila inteira, com suas ruas calçadas com pedras irregulares e suas casas praticamente intocadas, apresenta-se como há séculos, congelada no tempo. Os sinais do conforto moderno – água encanada, eletricidade, gás – são discretos. Sua igreja ainda conserva o átrio onde eram feitas as reuniões civis da população local. À exceção da rua principal, larga e desimpedida, as demais têm formas assimétricas e labirínticas e servem como acesso às casas e não à passagem. Não fosse pelos poucos automóveis e pelos moradores vestidos com roupas atuais, estaríamos imersos num passado secular. Era de esperar-se que a qualquer momento surgisse à nossa frente um cortejo medieval em homenagem a algum santo ou um fidalgo acompanhado de seu séqüito a cavalo. Tiaguito deixou-se dominar pelo clima; defendendo sua posição sobre uma carroça, erguia seu bastão como se fosse uma lança, ameaçando imaginários invasores.

E seguimos com os novos amigos até chegarmos a Rabanal del Camino. Esta vila, assim como Murrias de Rechivaldo, Santa Catalina de Somoza e muitas outras, antes quase abandonadas, ressurgiram graças ao fluxo crescente de peregrinos que diariamente alimentam o Caminho, em toda a sua extensão, deixando centenas de milhares de euros por ano em pagamento de suas modestas necessidades de abrigo, alimentação, cuidados com a saúde, lazer e, raramente, algum pequeno luxo.

 

24

 

No dia seguinte, Tiaguito seguiu com o taxi que alguns peregrinos contrataram para levar suas mochilas a Ponferrada. Em companhia de outros pereginos, iniciei o longo e difícil trajeto, abaixo de chuva e frio.

Quilômetros à frente, chegamos ao topo do monte Irago, o ponto mais alto do Caminho. Um denso nevoeiro cobria a região de La Cruz de Hierro (A Cruz de Ferro), que é uma referência importante para os peregrinos. É seu costume depositarem uma pequena pedra – às vezes trazida de seus países – na base da cruz, num significativo ritual de desapego, de pedido por greaça, de agradecimento, ou de qualquer outra razão pela qual vieram ao Caminho. Não apenas pedras compunham o expressivo montículo: infelizmente, la Cruz de Hierro era também usada para descartar restos de piqueniques feitos no parque ao lado.

 

Eu avançava atento, cuidando de não extraviar-me, quando ouvi toques de sino orientando-me para o rústico e exótico albergue de Manjarín. Deixei-me ficar ali por um pouco confraternizando com outros peregrinos e aquecendo-me com o café puro e forte preparado por Tomás, hospitaleiro do lugar que ele denomina ‘Una luz en el Camino’ (Uma luz no Caminho).

Logo após El Acebo, onde almoçei, um pelotão de nuvens escuras ameaçava descarregar sua artilharia sobre o grupo de peregrinos com o qual eu caminhava desde Manjarín. Começou a chover tão logo chegamos a Riego de Ambrós, onde um trecho da trilha seguia por uma pirambeira quase intransitável naquelas condições. Por alguns instantes eu invejei o conforto do táxi que levou Tiaguito. Logo à frente, a chuva tornou-se ainda mais intensa, encharcando-me a calça e as botas; nem mesmo minha jaqueta, dita impermeável, manteve-me seco. Minha perna direita latejava ainda mais, exposta ao esforço da caminhada, ao frio e à umidade.

Cheguei ao albergue de Ponferrada após nove horas e meia de caminhada e encontrei Tiaguito preocupado e tenso por minha demora. Porém, assim que me viu, alegrou-se e logo veio mostrar-me, orgulhoso, seu cajado no qual um peregrino gravara uma palavra que li como ‘Tiaguito’. O menino acompanhou o movimento de meus lábios, segurou-me pelo braço e insistiu para que eu lesse com mais atenção. Desta vez li: ‘Santiaguito’. A emoção bateu-me violenta e repentina. Abracei-o e deixei-o molhado de chuva e lágrimas, que eu disfarçava entre os pingos que caíam de meu boné.

Graciliano, peregrino brasileiro, já havia alimentado meu pupilo e dispôs-se a preparar-me algo para jantar enquanto eu me banhava e trocava de roupa. Por exemplos como este, percebi que são os peregrinos que tornam o Caminho sagrado porque o fazem de coração pleno de boa vontade e solidariedade.

Embora não fosse tarde, o céu estava escuro e ameaçador; porém chovia menos naquele momento. Graciliano acompanhou-me para comprar capas de chuvas e calças impermeáveis para mim e Tiaguito, pois havia previsão de tempo instável para os próximos dias.

A chuva incômoda e nossa pressa em ir às compras impediram-nos de apreciar o centro histórico da cidade, onde se localiza o belo e bem conservado castelo que foi erguido por cavaleiros templários há mais de oitocentos anos.


25

 

O dia amanheceu apenas nublado e não fizemos uso das capas de chuva que havíamos comprado ao final da tarde anterior. Melhor assim. Até Villafranca del Bierzo, andaríamos pouco mais de vinte quilômetros com tempo estimado em seis horas de caminhada em terreno plano. Saímos cedo, acompanhados de nosso amigo Graciliano, que caminhou conosco até Cacabelos. Coincidentemente, naquela cidadezinha voltamos a encontrar Bob, que sempre fora uma companhia agradável.

“Oi, Inácio. Como tem passado?”

“Olá, Bob. Eu e Tiaguito estamos bem. E você?”

“Bem. Vejo que Gertrud não está com vocês. Tem notícias dela?”

“A última vez que a vimos foi em Burgos, onde fiquei retido por tendinite. Creio que nos encontramos lá, lembra?”

“Sim, é verdade. Mas não lembro de ter visto Gertrud em Burgos.”

“Ela não esteve no mesmo albergue que nós. Mas despediu-se de nós na manhã seguinte.”

“Vocês pareciam dar-se bem com ela; pareciam uma família…”

“Não creio que chegamos a tanto. Mas ela foi uma boa companhia e ambos sentimos falta dela.”

Ele deve ter percebido que a lembrança de Gertrud havia me perturbado. Seguimos em silêncio por um tempo.

 

Foi um dia tranqüilo e agradável, no qual até a chuva nos deu trégua, desabando apenas quando já estávamos albergados.

Villafranca del Bierzo tem uma história que remonta ao século XI e ainda mantém bem conservados vários prédios de tempos idos, como o castelo e a igreja de São Tiago, cuja Portada del Perdón indulta peregrinos doentes ou impossibilitados por outras razões de irem até Santiago de Compostela.

À noite, Tiaguito, Bob e eu jantamos num pequeno restaurante em frente ao ayuntamiento. Por sugestão de nosso amigo, comemos peixe.

“Bob, você lembra de quando nos encontramos pela primeira vez?” – Perguntei.

“Lembro. Nós estávamos na mesma van que nos levou de Rocesvalles a Saint-Jean-Pied-de-Port, na tarde anterior ao início de nossa peregrinação.”

Eu não lembrava mais de quem viajava conosco naquele dia. Mas, ele sim. E não só, ele abriu seu caderno de anotações, onde havia registrado os vários encontros que teve com peregrinos, suas histórias e motivações, bem como a descrição de vilas, igrejas e monumentos. Além disso, ele registrava e estudava as lendas de cada localidade e suas intrincadas inter-relações com o Jogo da Oca, um dos mistérios iniciáticos do Caminho.

Era a terceira vez que fazia o Caminho e já havia escrito um livro sobre os milagres atribuídos à Virgem Maria nas muitas vilas e cidades ao longo do Caminho. Agora estava colhendo material para seu segundo livro. Sua idéia era escrever indo e voltando no tempo, para incluir também as histórias colhidas em suas peregrinações anteriores.

Insisti para ele ler suas anotações sobre nossos diversos encontros: ele havia sido extremamente minucioso e, em alguns momentos, senti-me constrangido por reviver meus dias recentes através dos apontamentos de alguém que conheci apenas de passagem. Coisas do Caminho!

 

26

 

O trecho de Villafranca del Bierzo a O Cebreiro é considerado um dos mais difíceis do Caminho. Eu quis que Tiaguito fosse de carona no táxi que levava as mochilas. Desta vez ele não aceitou, estava decidido a ir comigo.

Iniciamos nossa caminhada pela estrada que acompanha o curso do rio Valcarce. Recebíamos de frente lufadas de um vento morno, do qual logo fomos protegidos pelas montanhas. Alegrava-me ver nascer o dia sem a presença de nuvens ameaçadoras, realizando nossas melhores esperanças. A mata que cobria as montanhas ainda verdejava. As faias, porém, já se rendiam ao amarelado desespero outonal. O rio, sempre à nossa esquerda, corria rápido e sussurrante, para exibir sua primeira cheia da estação. Tudo era propício à contemplação: as amoreiras silvestres oferecendo seus frutos tardios; os arbustos, suas derradeiras flores; os pássaros, às vésperas da migração, seu canto de despedida; as castanheiras, gentis, deixando cair suas bolotas para expor seus frutos. A Natureza toda se dava em utilidades, beleza e arte.

Embora fôssemos surpreendidos por uma chuva fina e intermitente, as montanhas à frente eram acariciadas pelo sol e unidas entre si pelo arco-íris.

Quilômetros à frente, chegamos a Trabadelo junto com a chuva, agora mais intensa, e paramos para um lanche. Assim que nos sentamos, uma providencial falta de energia deu um fim à música irritante do bar, que, insensível, nos desconectava dos encantadores sons da Natureza, aos quais o estrondear dos trovões acrescentava seus graves.

Pela janela víamos o rio tornar-se arrogante e violento diante dos obstáculos que encontrava naquele trecho. Tiaguito colou o rosto ao vidro da janela olhando ora a corredeira, ora as folhas amareladas que o vento arrancava às castanheiras, fazendo-as dançar em círculos e as depositando graciosamente no chão, onde contrastavam com o verde da relva.

Ele também observou o céu escuro e suspirou, com um certo desânimo que desaba sobre os peregrinos em momentos difíceis. Contudo, bastou voltarmos ao Caminho e já estávamos dispostos e alegres. Meus bastões reproduziam no chão a métrica constante e implacável do tic-tac de um relógio de pêndulo, produzindo um som hipnótico e calmante.

Já próximo de La Portela, vi a sombra de um peregrino que andava no mesmo ritmo que eu, sem mais pressa ou vagar. Seus bastões batiam no chão na mesma métrica e nos mesmos locais que os meus. Seus pés pisavam exatamente sobre minhas pegadas. Nuvens claras abriam-se e o sol projetava minha sombra à minha frente. Tiaguito estava absorto com sua própria sombra quando uma senhora lhe ofereceu uma mão cheia de nozes já descascadas, que ele apressou-se em colocar na boca. Esperei minha porção, a mulher, porém, dispensou-nos com votos de ‘¡buen camino!’.

Tiaguito ora caminhava à minha frente, ora deixava-se ficar para trás. Eu escutava o ‘toc’ de seu cajado batendo entre o tic-tac dos meus bastões, assim eu sabia que ele estava próximo.

Ambasmetas nos recebeu com uma fina e suave cortina d’água no ponto exato onde o rio que seguíamos recebe um afluente. Antes que o chuvisqueiro se transformasse em chuva, entramos num restaurante para almoçar. Quatro homens jogavam cartas e um quinto, sentado à mesa ao lado, lia para eles as notícias de um jornal, concorrendo com o noticiário da TV. Todos nos olharam, demonstrando estranheza pela nossa presença. Logo, porém, os clientes deixaram de preocupar-se conosco e voltaram à sua atividade e pudemos fazer nossa refeição sem pressa.

O tempo parecia brincar conosco. Num minuto chovia, noutro a chuva cessava. Ora o calor do sol nos cozinhava ao bafo, sob as capas plásticas que vestíamos, ora a chuva nos molhava antes

de repô-las. Depois de um tempo, ao invés de tirar as capas, nós jogávamos a aba da frente sobre o ombro, para baixá-la novamente quando outra lufada de vento tangia um tanto de chuva sobre nós.

Ao chegarmos a Las Herrerias, onde se iniciava a parte mais crítica da jornada, ainda acompanhávamos o leito de um rio, mas eu não tinha certeza se era o mesmo que vimos em Villafranca del Bierzo ou apenas um afluente. Já estávamos andando havia mais de cinco horas e não víamos peregrinos atrás de nós, provavelmente porque tínhamos sido ultrapassados durante nossas longas paradas.

Quando começamos a subir a montanha, o curso d’água já não passava de um córrego que acabamos por perder de vista quando acompanhamos a curva da estrada, à direita.

Chegamos a Faba por uma rápida descida em estrada de chão. Lá esperava-nos uma trilha íngreme e ascendente que se desenhava no interior de um belo bosque. Mais adiante, ora pedregosa, ora barrenta e pesada de tanto ser pisoteada e estercada pelo gado, a trilha perdia seu encanto. De tanto escorregar, Tiaguito desistiu de suas sandálias e pisava enojado na lama; ainda assim, ele subia ágil como um cabrito montês.

Quando passamos Laguna de Castilla, percebi que chegáramos quase ao topo da montanha, cansados e doloridos mas cheios de alegria por estarmos próximos de concluir a etapa e ainda com disposição para admirar a magnífica paisagem das montanhas próximas e distantes. Nova chuva despencou sobre nós ao mesmo tempo em que o vento inflava nossas capas, tornando nossa marcha instável e mais difícil. Era O Cebreiro nos dando as boas-vindas, após uma caminhada de nove horas. A vila, cujas casas são construídas de lascas de pedra e dispostas de forma compacta e assimétrica, tem o encanto da própria montanha, como se dela fizesse parte.

Nossa recompensa foi um magnífico e demorado banho quente e um churrasco de chuleta ao jantar, acompanhado de vinho tinto, do qual até Tiaguito tomou alguns goles. A chuva continuava, mas nossos corações estavam aquecidos com a boa companhia dos amigos peregrinos.


27

 

As noites outonais tornavam-se visivelmente mais longas. Nem por isso os peregrinos retardavam-se nos albergues. Quando saímos de O Cebreiro era escuro e usamos minha lanterna para seguir pela trilha encharcada pela chuva da noite anterior. Seguia conosco Anke, uma peregrina alemã que se desencontrara de seu grupo e que me fez lembrar de Gertrud, por ser o oposto dela. Anke era comunicativa, alegre e gostava de falar sobre os mais variados assuntos. Junto com seu amigos, que encontramos pouco mais de uma hora depois, fizemos nosso desjejuem em Hospital.

A partir dali, nos dispersamos, tendo por nova companhia o sol a brilhar num céu de poucas nuvens. Tiaguito seguia à minha frente marchando e usando seu cajado como baliza. Eu batia os meus bastões no ritmo de um tambor, cuja cadência ele não ouvia mas acompanhava pela sombra projetada no solo.

Ao longo do Caminho, eu havia convivido com muitas dezenas de pessoas, algumas por um tempo maior, com outras esporadicamente, em encontros casuais, apenas o tempo necessário para desejarmos uns aos outros ‘¡Buen camino!’. Entre os peregrinos que eu tinha satisfação em reencontrar estava um casal australiano, ambos águas tranqüilas, sempre prontos a oferecer um caramelo, um sorriso, uma palavra. Nosso último encontro ocorreu naquele trecho, logo à saída de Hospital. Eles pararam ao nos ver e cumprimentaram-nos alegremente. Nós nos conhecíamos como ‘os australianos’ e ‘o brasileiro e o menino’, como se Tiaguito e eu fôssemos indissociáveis. Só naquele dia dissemos nossos nomes.

“Inácio.”

“O que significa?” – Perguntou ela.

“Nascido do fogo. E qual o seu nome?”

“Felicitas.”

“Felicidade. Que belo nome. E o seu?” – Perguntei dirigindo-me ao homem.

“Christofer.”

“O que carregou Cristo em seus ombros?”

“Não, eu não sou aquele Christofer. Mas, eu tenho certeza que é Cristo que me leva, desde o início do Caminho” – Respondeu, dando mostra de sua fé.

“E este é Tiaguito.” – Eu apresentei, colocando um braço sobre seus ombros.

O menino apressou-se em mostrar seu cajado para o casal. Ao ler ‘Santiaguito’, Felicitas brincou, dizendo em tom de admiração:

“Mas, então São Tiago ainda é um menino?! Que maravilha!”

Tiaguito percebeu que as palavras de Felicitas tinham algo de admiração e que lhe diziam respeito. Feliz, balançou afirmativamente a cabeça, aceitando o elogio. Despedimo-nos com votos de encontrar-nos novamente, não sem antes de Felicitas dar a Tiaguito uma mão cheia de caramelos. Ele e eu seguimos adiante, em passo mais rápido.

 

Havia também um jovem trio australiano – ao qual, às vezes, somava-se Aaron -, muito simpático e sempre a fazer brincadeiras, com o qual eu encontrava-me tanto nas trilhas como nos albergues. Tamanha era a freqüência dos encontros que estes – os encontros – passaram a ser o principal assunto de nossas conversas. Aos poucos, fomos trocando informações sobre os trajetos feitos, em percurso e por fazer. Embora eu tivesse bem mais idade que eles, ou talvez até por isso, sentia que apreciavam ver-me andar num ritmo levemente mais rápido que o deles e vencer os trechos mais longos ou mais difíceis do Caminho com igual disposição e resistência. Admiravam-se, também, com os cuidados que eu dedicava a Tiaguito, com o qual brincavam, dando-lhe alguma fruta ou guloseima e de quando em quando o levavam consigo, por algum tempo. Também Tiaguito, normalmente quieto e retraído na presença de estranhos, apreciava sua companhia, em especial a de Aaron, pois sentia-se tratado por ele como um irmão mais novo.

Estávamos em Fonfría, quando encontramos Aaron e seus amigos. Tiaguito logo foi chegando-se ao grupo e acabou seguindo com ele, enquanto eu parava para descansar. Minutos depois, quando retornei minha marcha, ouvi alguém dizer, com forte sotaque inglês:

“¡Que venga el toro!” (Que venha o touro!)

Espanto é pouco para expressar a cena que eu via à minha frente: ninguém mais nem menos que Tiaguito fazendo às vezes de toureiro. Muito sério, ele segurava seu agasalho, à guisa de capa, enquanto Aaron fazia as vezes de touro. Mãos coladas à testa como chifres, dobrando o corpo o quanto lhe permitia o peso da mochila, ele investia em direção à capa que lhe era apresentada.

“¡Olé, Tiaguito!” – Gritava o grupo, incentivado pela habilidade de meu amiguinho.

Araon levou um olé atrás do outro. Então, inverteram os papéis. É sabido que quase sempre vence o toureiro. Mas aquele era o dia do touro. Tiaguito acertou no rapaz uma ‘chifrada’ na barriga fazendo-o cair, dolorido e exausto. O menino comemorava por ter vencido por duas vezes: como toureiro e como touro. Entre gargalhadas e aplausos continuamos a caminhar, assim que Aaron sentiu-se recuperado. Aos poucos, deixamos o grupo para trás e, após uma parada em Triacastela, fizemos um último estirão até Samos.

 

Há tempos havia percebido que se rompera a costura do calcanhar de minha bota direita, a da perna acidentada, machucando-me cada vez mais. Suportei a agonia por dias, algumas vezes protegendo o calcanhar com emplastros de silicone. Assim que passamos Triacastela, troquei as botas pelas sandálias que levava para usar ao final do dia, e seguimos sem incidentes até Samos, onde nos hospedamos em seu imponente mosteiro beneditino.

O mosteiro, um dos mais antigos da Espanha, foi fundando no século VI. Sua importante biblioteca desapareceu num incêndio que atingiu grande parte do prédio construído em torno dos claustros. A construção original teve expressivos acréscimos ao longo dos séculos, mesclando os estilos renascentista e barroco, como ainda hoje podem ser apreciados, bem como alguns resquícios da arquitetura original, de influência árabe. Seu interior tem a simplicidade exigida pela vida dedicada à contemplação e à cultura da Igreja. Ainda assim, a cúpula do átrio principal, de traços simples e vigorosos, é uma verdadeira obra de arte. No decorrer da visita, ao cair da tarde, podíamos ouvir os monges cantando salmosem cantochão. Fechandoos olhos, pude imaginar-me transportado a séculos atrás, pois tanto o monastério quanto as orações vespertinas eram exatamente os mesmos daqueles tempos e, na capela, os monges obedeciam ainda ao mesmo cerimonial e hierarquia. Contudo, apesar do hábito, mostravam pertencer aos dias atuais, seja por seus traços fisionômicos e uma atitude ao mesmo tempo severa e altiva, seja por uma certa agitação que apresentavam ao passar.


28

 

Ao chegar a O Cebreiro, havíamos entrado na Galícia e, desde Samos, teríamos apenas mais cento e vinte quilômetros para chegar ao final de nossa peregrinação. De Samos a Portomarín, Tiaguito e eu seguíamos por uma trilha de natureza exuberante, na qual eu podia ouvir o sussurro tranqüilo e suave dos córregos, o farfalhar sensual das folhas lembrando o roçar de saias, e o cantar apaixonado dos pássaros antecipando a despedida próxima daquelas plagas. Não me passava despercebido que Tiaguito seguia insensível àqueles sons. Ele, no entanto, de olhar atento, foi o primeiro a ver um esquilo ziguezagueando sobre a trilha à nossa frente, para então esconder-se na mata.

 

Enquanto caminhávamos, ao passar pelas pequenas vilas rurais, eu observava as pessoas que, da infância à velhice viam passar as águas peregrinas com o habitual desinteresse provocado pela rotina. E eu considerava que talvez sem compreenderem seu significado, não tivessem ânimo de juntarem-se elas próprias àquelas águas. No entanto, também considerava eu, podem ter-se perguntado, algum dia: – ‘O que procuram esses peregrinos que não possam encontrar em seu próprio lugar de origem?’. Ou que tal qual o barqueiro Sidarta, de Hesse, estivessem aprendendo tanto ou mais sobre as lições do Caminho-rio que os peregrinos que por ali passam num fluxo ininterrupto.

 

Considerações à parte, muitos agricultores mostram-se bem mais práticos, como aprendi com uma mulher que nos oferecia panquecas açucaradas à porta de sua casa, numa minúscula vila entre Barbadelo e Rente. Aceitamos e Tiaguito mostrou dois dedos, ou seja, queria duas panquecas. Quando íamos pegá-las, a mulher recuou o prato e pediu uma ajuda em troca:

“Certamente o senhor tem mais condições de dar-me algo em troca das panquecas que eu de dá-las de graça…”

Quando lhe ofereci um euro, acrescentou:

“ Bem, senhor, pelo menos cinqüenta centavos por panqueca…”

E, menos reticente na ação do que com as palavras, tomou-me da mão mais uma moeda, enquanto nos despachava fechando a porta e nos desejando ‘¡Buen camino!’.

Paguei sem sentir-me ofendido, pois não apenas as panquecas vinham em boa hora e eram gostosas, como compreendi que era a forma que a mulher encontrara de aumentar a renda familiar. Melhor sorte tinham seus vizinhos, em cujos paióis eu podia ver carros de luxo, importados.

 

Eu novamente havia trocado as botas pelas sandálias e, para aliviar-me de seu peso, abandonei-as sobre uma pedra, em meio àquelas matas que tanto havia apreciado. O vento tornou-se forte, tangendo um rebanho de nuvens que prenunciavam chuva. Pressenti que a ocasião iria colocar-me à prova quanto ao ter-me desfeito das botas. Paramos em Rente para almoçar e deixar à mão nossas capas.

Entre suas idas e vindas para atender aos fregueses habituais, o dono do bar parava à nossa mesa para conversar. Ele tinha parentes que emigraram para o Brasil logo após a guerra civil espanhola e com os quais ainda mantinha contatos esparsos. Ele falava alto, em galego, e logo o ambiente tornou-se festivo e caótico, com a participação dos demais fregueses. Antes de sairmos, todos brindaram com vinho, usando um refrão: “¡Arriba! ¡Abajo! ¡Al centro! ¡Adentro!” (Acima! Abaixo! Ao centro! Adentro!). A cada palavra, faziam com as taças o movimento correspondente.

A parada foi providencial, pois chuviscou um pouco enquanto almoçávamos e, embora ainda soprasse um vento frio, as nuvens de chuva haviam-se ido. Revigorados pelo almoço – eu também pelo vinho -, deixamos Rente para trás.

Após mais de oito horas de caminhada, chegamos ao final da etapa. Portomarín já se anuncia três quilômetros antes, quando é possível vê-la do alto da montanha. Espantou-me ver que é uma cidade nova; apenas poucos de seus antigos prédios foram transladados da cidade antiga, hoje submersa sob as águas represadas do rio Miño. Sua sóbria e sólida igreja-fortaleza, dedicada a San Nicolás, foi construída no séculoXII às margens do Miño e reedificada, pedra por pedra, no centro da cidade.


29

 

Acordei com o acesso de tosse de uma peregrina e não dormi mais. Embora fosse madrugada, saí do dormitório e desci ao banheiro para vestir-me, preparar minha mochila, untar a canela dolorida com pomada anti-inflamatória e calçar os tênis que havia comprado na noite anterior, pois a sandália mostrara-se inadequada para caminhar longas distânciasem trilhas.  Assim que terminei de preparar nosso lanche, voltei ao dormitório para acordar Tiaguito. Como ele não quisesse comer, pusemo-nos na estrada um pouco antes das seis horas, rumo a Melide.

A sinalização do Caminho, tão visível à luz do dia, precisava ser procurada à luz de lanterna, com a qual Tiaguito brincava. Seus olhos espertos eram os primeiros a ver os sinais. Quanto a mim, admirava a noite que ainda cobria a Terra com seu negro manto de adornos dourados que piscavam uns para os outros. Também a Lua grávida e leitosa olhava-nos maternal, a iluminar-nos o caminho.

Após duas horas de caminhada chegamos a Gonzar. Atrás de nós as nuvens incandesciam em tons dourados e prateados. O dia estava conosco.

 

Estávamos já próximos de Santiago de Compostela. Tornei-me ainda mais contemplativo e meditativo, dispensando outras companhias que não fossem Tiaguito, que também parecia ter-se aquietado. Eu refletia sobre os efeitos da caminhada sobre mim e estava mais atento ao meu mundo interior. Eu vivia um grau de consciência mais apurado, mais refinado, mais presente, adquirido ao longo de quase quatro semanas no ritmo lento da caminhada.

 

Eram quase onze horas quando chegamos a Airexe. Tínhamos andado dezoito quilômetros e ainda nos faltavam outros vinte e dois até Melide. Paramos apenas para um breve descanso, pois minha perna doía. Tiaguito, no entanto, acostumado a zanzar entre as vilas de sua província, parecia estar bem. Voltamos à trilha, que naquele trecho nada mais é que o acostamento da estreita via asfáltica.

Um carro passou por nós e buzinou. Tiaguito reconheceu seu padrinho e correu até ele, quando este já havia estacionado à entrada de uma propriedade rural. O menino, havia semanas privado de comunicar-se com a linguagem dos sinais, gesticulava freneticamente diante de padre Eduardo. Este tomou as mãos do afilhado entre as suas, não apenas para tranqüilizá-lo, mas também para permitir que o abraçasse. Damo-nos as mãos e nos abraçamos como velhos amigos.

“Preciso levar Tiaguito comigo, temos um assunto de família a tratar. – Informou o padre num tom urgente e grave. – Talvez você deva vir conosco, até Melide. Não parece bom insistir em continuar assim…” – acrescentou, vendo-me mancar.

Agradeci e disse que continuaria a caminhar. Se necessário, faria paradas mais freqüentes e longas ou passaria a noite em Palas de Rei. Tiaguito mostrou ao padrinho seu cajado esculpido. Mais atencioso que eu em Ponferrada, o padre o apreciou com vagar e sorriu ao ler ‘Santiaguito’. Fez sinal ao menino que embarcasse no carro e, apressado, pediu-me que lhe telefonasse assim que chegasse ao albergue, em Palas de Rei ouem Melide. Sóentão notei tristeza em seu olhar…

 

Ao longe eu via torres de geração de energia eólica que se pareciam mais com gigantes que os moinhos de vento do engenhoso fidalgo de Cervantes: ‘– Que gigantes? – inquiriu Sancho Pança/ – Aqueles que vês ali, com grandes braços – respondeu-lhe o amo – alguns há que os têm de até quase duas léguas.’

A cada passo os gigantes ficavam mais próximos, exibindo sua metálica arrogância e girando ameaçadoramente seus três longos braços. E a cada passo eu carregava um peso maior, provocado pela falta de Tiaguito e pela dor na perna ferida.

Ao passar por Palas de Rei, decidi que iria até Melide. Estava no Caminho havia sete horas e ainda tinha quinze quilômetros pela frente. Antes, porém, parei para lanchar e sentei-me a uma mesa no pátio de um bar; apoiei a perna dolorida sobre uma cadeira e deixei-me estar ali até sentir-me melhor. Antes de seguir meu caminho, massageei de leve a canela com pomada anti-inflamatória.

Não parei nem admirei a bela alameda por onde passava e que parecia não acabar. O tic-tac dos bastões era só o que eu ouvia, hipnotizado. Eu não tinha mais consciência da paisagem ou de estar andando. Andava por inércia: tic-tac, tic-tac…

Para reanimar-me, comecei a cantar canções do folclore brasileiro. Olê, mulhé rendeira!, olê, mulhé rendá!, tu me ensina a fazê renda, que eu te ensino a namorá / tua lagoa formosa, ternura de rosa, poema ao luar, cristal onde / a recompensa de chegar a Melide hoje, é a / liberdade, que eu perdi naquele dia que me embrenhei na cidade / maravilhosa, cheia de encantos mil, cidade / cheia de encantos e mel… Melide. Quanto mais confusamente eu cantava, mais me distraia da dor e da fadiga.

Quase nada lembro dessa cidade. Cheguei em péssimas condições ao albergue. Sob o chuveiro, deixei a água quente escorrer sobre o hematoma de minha canela dolorida.

Conforme havíamos combinado, telefonei ao padre Eduardo. Perguntou-me se eu concordava que ele viesse buscar-me em meia hora, pois precisava muito conversar comigo. Concordei e, após ter feito um lanche, voltei ao albergue para esperá-lo. A dor na perna já não era tão intensa e eu deixei-me contagiar pelo clima de excitação e alegria dos peregrinos, pois estávamos a apenas dois dias de Santiago de Compostela. Apenas mais cinqüenta e três quilômetros. Cinqüenta e três sempre fora meu número de sorte, eu dizia a mim mesmo para dar-me ânimo para continuar no dia seguinte

 

O padre veio só e, recolhido em silêncio, levou-me com ele até o que me pareceu ser uma pequena cidade, não muito distante de Melide. Encontrei Tiaguito sentado num dos degraus da igreja. Pareceu-me mais confuso que triste e não mostrou entusiasmoem ver-me. Levantou-see conduziu-me ao interior da igreja, onde se realizava um velório. Levou-me até junto do caixão cercado de freiras que rezavam num murmúrio monocórdio, repetindo sempre a mesma oração. O padre sentou-se, cabisbaixo e triste, num banco ao lado, lendo suas próprias orações. Estendida no caixão estava o corpo de uma mulher ainda jovem, vestida com o que parecia ser um hábito religioso. Tinha as mãos entrelaçadas postas em oração e rodeadas de um rosário. Parecia sorrir um sorriso sobre-humano: um sorriso de êxtase. Mesmo emoldurado pelo véu religioso, seu rosto parecia-me familiar. Mais pessoas transitavam em volta do caixão e tive de afastar-me, indo sentar no fundo da igreja, sem saber exatamente o que fazer. Há décadas eu desistira do catolicismo e não tinha o hábito de rezar. Mesmo assim, improvisei uma oração em memória da freira desconhecida.

Devo ter cochilado, pois assustei-me com o peso de uma mão sobre meu ombro esquerdo.

“Meu amigo, – falou o padre, sentando-se ao meu lado – eu preciso desabafar com alguém… Você se dispõe a ouvir-me? – Vendo meu espanto, acrescentou: – Se Tiaguito confia em você, também eu posso confiar.”

Saímos da igreja, acompanhados do menino, e seguimos até o alto de uma colina, de onde a Lua podia ser vista em sua plenitude e graça. Sentamo-nos no chão e por algum tempo ficamos em silêncio.

“Sabe, ser padre tem suas desvantagens… Como somos nós os confessores, não temos a quem fazer confidências, a não ser a outro confessor. Neste momento eu preciso de um ser humano capaz de escutar-me, não com os ouvidos, mas com o coração. – Ele respirou fundo e, após uma breve pausa, continuou: – É pedir muito, amigo?”

“Estarei atento a cada palavra, padre.” – Respondi solícito, mas não sem surpresa e apreensão.

Após um momento de silêncio, no qual ele procurava por onde começar, disse com a voz embargada:

“Aquela freira que está sendo velada e eu éramos irmãos. Éramos o que restou de nossa família. Ainda jovens, perdemos nossa mãe e nosso pai faleceu há dois anos. Minha irmã Henriqueta escolheu a vida monástica aindaem criança. Somosde uma família de convicções católicas arraigadas. Desde cedo, ela freqüentava a igreja quase diariamente em companhia de nossa mãe e ficava penalizada do grande Cristo crucificado e por vezes chorava, pedindo perdão pelos pecados, seus e alheios. Um dia prometeu dedicar-lhe a vida. E, apesar do desgosto de nosso pai, já então viúvo, aos dezesseis anos ela entrou para o convento. Sua vida como noviça foi irreparável e as freiras encantavam-se com sua alegria e disposição e não duvidavam de que aquela era uma vocação autêntica. Ao fazer seus votos, ela recebeu o nome religioso de Maria Angélica.”

“Como ela mesma contou-me mais tarde, naquele dia de grande emoção em que passou a ser noiva de Cristo, no sentido religioso, ajoelhou-se diante do crucifixo e chorou de alegria, pois sentia-se redimida. E à noite, recolhida em sua cela, ela teve um sonho. Cristo, seu noivo, desceu da cruz e sem dizer palavra sorriu e acariciou-lhe o rosto e os cabelos. Beijou-lhe os olhos e a boca com ternura. Irmã Maria Angélica sentiu-seem êxtase. Estavasendo consumada sua entrega. Cristo a tomava por esposa. Ao acordar lembrou do sonho. Sentia-se tranqüila e alegre: era sinal de que ele a aceitara. Por várias noites o sonho repetiu-se. E mais e mais a irmã Maria Angélica ansiava pelo isolamento da cela. Mais e mais queria entregar-se ao seu Senhor e Redentor.”

“As freiras notaram mudanças no comportamento da freirinha, que vivia num êxtase desconhecido no convento. A superiora aconselhou-a a procurar o confessor. Irmã Maria Angélica, por obediência, acedeu sem comentários. A tudo que o padre questionava ela respondia de forma simples e direta. Foi assim que contou de seus sonhos. Foi bruscamente interrompida pelo confessor: ‘Você percebe a blasfêmia que comete? Cristo é intocável e jamais teve uma relação carnal. O sonho, certamente, está a mostrar o grande equívoco que foi você ter-se tornado freira. Você deve rezar muito e pedir a Deus que a perdoe’.”

“Minha irmãzinha, em sua inocência, sentiu-se ludibriada pelo demônio. Já não podia encarar o Cristo que morrera por seus pecados. Arrependida, chorou e orou por longos dias e noites, até que a fadiga a venceu. Seu sono foi carregado de pesadelos. Cristo – antes amoroso – a fitava com ódio e ela punha-se a correr, acossada por uma multidão que a apedrejava. O pesadelo repetia-se por vezes e vezes sem fim. E nem suas súplicas de perdão, cujo eco reverberava em seus ouvidos, aplacavam seus acusadores. Ao voltar a si, deu-se conta de estar na enfermaria. Olhou à sua volta, reconhecendo irmã Júlia, enfermeira do convento. Sussurrou apenas: – ‘Por que, irmã?, por que?’. Irmã Júlia consolou-a: – ‘Descanse, irmãzinha. Todas nós estamos orando por você’.”

“Só então fui comunicado do que estava acontecendo e passei a visitá-la regularmente. Minha irmã recuperou-se fisicamente. No entanto, uma avaliação psiquiátrica revelou que sua fé e devoção ingênuas, que tanto encantaram as demais irmãs, bem como seus sonhos de relação carnal com Cristo eram sintomas evidentes de desequilíbrio mental. A partir de então, foi medicada e não mais mostrou alegria, mesmo quando seus pesadelos cessaram. Cabisbaixa, executava mecanicamente suas tarefas e orações. A sós, na cela, evitava fitar o crucifixo e balbuciava palavras de perdão. Sua contrição comovia a todos, em especial ao padre confessor, que lhe dirigia palavras de conforto e fé.”

“Numa das visitas que lhe fiz, contou-me ela que por mais que orasse, não podia entender… Desde cedo, dedicara-se ao Senhor e essa era a alegria de sua vida. Sentira-se feliz por seus sonhos de entrega absoluta: Cristo a queria. Onde estaria seu sacrilégio? E as dúvidas entre o amor e a culpa alternavam-se de forma irreconciliável. Impotente diante de sua perplexidade, eu rezava com ela ao Todo Poderoso que nos trouxesse alguma luz.”

“Normalmente, religiosas nessas condições são encaminhadas para tratamento fora do convento. Porém, por uma permissão especial da Diocese e anuência da madre superiora, que era aparentada de mamãe, minha irmã pode transferir-se para esta comunidade. Aqui há menos acompanhamento psiquiátrico, mas mais atenção e afeto. Ela, desde o início, foi bem recebida e seus momentos de lucidez compensavam suas crises. Consola-me pensar que sua fé e devoção, apesar de sua doença, eram profundamente verdadeiras… – E o padre interrompeu sua fala, procurando controlar sua emoção. – Passaram-se anos sem que ela se recuperasse. Atormentada por seu conflito ela definhava. Hoje pela manhã, ela foi a única ausência notada na capela onde as freiras reuniam-seem oração. Amadre superiora foi procurá-la em sua cela. Encontrou-a despida sobre o catre, o crucifixo premido contra os lábios. Chamou por ela. Não houve resposta. Irmã Maria Angélica estava morta. A madre notou-lhe no rosto uma expressão de êxtase. Ajoelhou-se junto ao corpo e orou.”

O padre esfregou as mãos no rosto como que para lavá-lo com as lágrimas que brotavam abundantes de uma fonte de dor muito profunda. Suspirou pesadamente e continuou:

“Quando me tornei adulto, já padre, por várias vezes pensei sobre a escolha que minha irmã havia feito. Por vezes, eu duvidava que fosse uma vocação verdadeira. Eu me questionava se sua fé desesperada, sofrida e carregada de culpa não seria apenas o reflexo de uma interpretação equivocada da doutrina católica….”

O padre respirava com dificuldade. Juntou as mãos em frente à testa, apoiando-a com os polegares. Por várias vezes eu pensei em fazer algum comentário, mas continha-me quando percebia que seria para contestá-lo ou para confirmar os argumentos que pareciam demonstrar um vacilo em sua fé.

“Parecia-me que a culpa e a busca de perdão foram o motivo que a levou ao convento… Mas agora, no entanto, penso que foi o êxtase e não o sofrimento que a resgatou. Agrada-me pensar que minha irmã viveu momentos de êxtase místico verdadeiro e não crises de distúrbio mental, como querem a psiquiatria e a própria Igreja. A psiquiatria não reconhece ou não considera a dimensão espiritual das pessoas; provavelmente, psiquiatras e psicólogos jamais se permitiriam viver uma fé autêntica. Quanto à Igreja, é conveniente concordar com o laudo psiquiátrico, porque lhe é impossível sequer imaginar a possibilidade de uma experiência mística desde tipo. Eu, porém, penso que pessoas simples e inocentes como minha irmã têm uma grande fé, verdadeira e pura como a fonte da qual bebem: o próprio Cristo. Se estou correto em minha dedução, minha irmã experimentou uma dimensão libertadora, de glória divina.”

Eu ouvia calado, tentando entender a alma daquele homem que infinitas vezes ouvira com igual atenção as almas a seus cuidados. Mesmo não tendo educação teológica, de alguma forma eu o entendia porque, colocado na condição de confidente, eu próprio passava por uma experiência de profundo envolvimento psicológico e espiritual naquele momento. Tanto quanto ele, que se entregava por inteiro em seu desabafo, eu estava inteiro em minha disponibilidade para ouvi-lo.

Lágrimas furtivas escapavam dos olhos do padre, que eu via através do filtro de minhas próprias lágrimas. Tiaguito olhava-nos sem entender. Perturbado, saiu correndo em direção à vila. Nós seguimos com o olhar seu vulto iluminado pela luz da Lua até sumir entre as sombras das primeiras casas. E então o padre continuou:

“Mas, isso não é tudo. O padre confessor, logo no primeiro ano da crise de minha irmã, tornou-se assíduo em suas visitas. Assíduo e íntimo demais. Meses depois ela deu à luz a um menino que logo lhe foi tirado, pois sua mente estava completamente desestruturada. Tentei que meu pai recebesse o menino como neto. Não apenas ele negou-se a fazê-lo mas, também, rompeu definitivamente com Henriqueta e a deserdou. Foi quando ela transferiu-se para cá. Dói-me lembrar que nosso pai morreu recusando-se a vê-la … – O relato lhe pesava; respirou fundo, antes de continuar:  – Já deves saber que o menino é Tiaguito, que entreguei a uma família para adoção. Quando descobriram que ele era surdo-mudo, o rejeitaram e desde então eu tenho cuidado dele como posso.”

Prevendo que eu deveria lembrar de sua versão anterior sobre o menino, justificou-se:

“Você deve entender… eu não podia dizer toda a verdade sobre meu sobrinho. Eu tinha de protegê-lo e também à minha irmã.”

“E quanto ao padre confessor?” – Perguntei.

“Essas questões de assédio sexual entre religiosos são difíceis de ser tratadas no seio da Igreja. No entanto, considerando que ele se aproveitou da condição de confessor – que consideramos sagrada -, ele foi suspenso de suas atividades eclesiásticas, enquanto aguardava o julgamento canônico. Contudo, antes mesmo do final do julgamento, ele pediu dispensa dos votos e laicizou-se. Porém, num país tradicionalmente católico como a Espanha, seu ato trouxe-lhe conseqüências desastrosas. Há tempos, soube que ele havia emigrado e que hoje vive na Argentina.”

Respiração difícil, ombros caídos, mãos comprimindo-se, queixo tenso, palavras quase mordidas traíam o angustiado controle de suas emoções, expondo uma dor antiga e negada, prestes a emergir. Num arranco, o padre pôs-se em pé, numa atitude ameaçadora. Assustei-me com sua inesperada reação e fiqueiem alerta. Seurosto contraiu-se num esgar, suas mãos crisparam e seu peito dobrou para frente e logo foi jogado para trás pela força de um urro nascido nas entranhas.

Seguiu-se o silêncio, quebrado apenas pelo seu respirar profundo e difícil. E então chorou convulsivamente, abraçando-se a si mesmo e balançando o corpo para frente e para trás, cambaleando, embriagado pelo excesso de sentimentos que finalmente se permitia expressar. E chorou o choro de uma vida. Chorou pelo carinho materno que lhe faltou ainda na adolescência. Chorou a submissão à tirania e à insensibilidade paternas. Chorou a perda da irmã, último vínculo familiar de sua geração e pelos abusos que ela sofrera por parte de quem depositara sua confiança. Chorou, também, pelas desventuras de Tiaguito: afastado da mãe ao nascer; rejeitado pelos pais adotivos; perambulando à-toa pelas vilas, em busca de suas origens; iludido pelo padrinho, que lhe escondia o fato de ser seu tio. Chorou, enfim, por si mesmo, por suas culpas e dúvidas de fé, por sua vida solitária e vazia de afeto humano…

Aos poucos sua tensão afrouxou-se e o choro tornou-se suave e balsâmico. Ele baixou-se para pegar os óculos que caíram.  Seu rosto, antes tenso, havia-se transfigurado e seus olhos brilhavam. Então, abraçou-me fortemente:

“Um amigo, um ser humano que escuta é uma benção, obrigado! – Exclamou, apertando-me as mãos. – Meu consolo está em Deus, mas você foi Seu instrumento de cura e de reafirmação de fé.” – Refeito, apontou em direção à vila e pusemo-nos a andar, lentamente.

Na minha percepção eu não havia feito nada de extraordinário, porém resolvi calar. Também calei ao suspeitar de ter sido escolhido pelo padre por ser estrangeiro, prestes a deixar seu país, livrando-o de constrangedores reencontros, caso viesse a arrepender-se de ter-se exposto tão visceralmente. Porém, vendo-o sorrir, já recuperado, duvidei de minha suspeita. Quem sabe eu apenas estava ali quando ele precisou de um ombro amigo e como ele mesmo disse: ‘se Tiaguito confia, também eu posso confiar’.

“E quanto a Tiaguito?” – Perguntei.

“Agora que posso tornar pública sua história, pretendo obter a adoção definitiva dele, na condição de tio.”

“Como será que ele irá reagir?”

“Eu pretendo revelar-lhe todos os fatos que envolvem a vida de sua mãe, tão logo eu mesmo esteja preparado para isso. Então, poderei dedicar-me mais a ele…”

“Se obtiver sua adoção, mesmo que não queira, será cobrado para educá-lo de acordo padrões sociais adequados.” – Afirmei, acentuando a palavra ‘adequados’ com ironia.

“Espero que não! Tiaguito é especial: é livre, auto-suficiente e feliz … Quero apenas amá-lo; mais que a um sobrinho, quero amá-lo pelo ser que ele é… O resto, Deus proverá.”

“O senhor pretende levá-lo consigo de volta a Luqin?”

“Sim. Acredito que o momento ideal seja agora, pois em dois dias você terá terminando sua peregrinação.

“Mas, e quanto ao propósito de Tiaguito de ir a Santiago?”

“A graça que ele queria pedir já a obteve: conhecer a mãe. Amanhã, logo após o enterro, voltamos a Luquin.”

Minha apreensão com Tiaguito crescera consideravelmente nos últimos dias, pois nossa ligação tinha data para terminar. Não poderia haver final mais feliz para ele, que estava sendo abertamente assumido por um familiar. Disse isso ao padre enquanto entrávamos na igreja.

“É estranho que a morte lhe tenha devolvido a expressão suave e o sorriso, para enfim, revelá-la ao mundo e ao próprio filho.” – Refletiu o padre, olhando o corpo da irmã.

Tiaguito estava em pé sobre um banco olhando o movimento das pessoas, sem que eu pudesse ler em seu rosto o que se escrevia em sua mente ou em seu coração. Ainda assim, ele pareceu-me mais confuso com a descoberta que triste por saber que sua mãe morrera.

O povo circulava em torno do caixão. Vinha conhecer e homenagear a freirinha louca, cuja história conhecia apenas parcialmente, entremeando realidade e fantasia e tecendo uma aura de santidade a seu redor. Os homens se persignavam. As mulheres depositavam flores no caixão. As crianças ficavam na ponta dos pés para ver.

Quando restaram apenas algumas pessoas dispostas a velar o corpo da Irmã Maria Angélica durante a noite, o padre, Tiaguito e eu saímos da igreja e eles levaram-me de volta a Melide. O padre abraçou-me como a um irmão e desejou-me uma auspiciosa chegada a Santiago de Compostela. Tiaguito, pressentindo nossa despedida, manteve-se junto ao tio balançando a cabeça, sempre a olhar para o chão. Estendi-lhe a mão e aguardei. Ele escondeu-se no carro, fugindo do adeus. Tomei o rumo do albergue, lentamente, na esperança de que o menino ainda viesse despedir-se de mim. Minha estratégia falhou, como falharam as razões que procurei para meu próprio consolo. Sentindo o peso de carregar Tiaguito na mente e no coração, entrei e fechei a porta. O ronco do carro partindo perdeu-se na noite…

 

Dominado pela frustração de ter perdido Tiaguito, quem sabe para sempre, percebi que iniciava um novo movimento de montanha-russa de pensamentos. Pacientemente, tentei reconhecer o aviso de alerta que precede o despencar de pensamentos e emoções. Captei um primeiro momento de lucidez e logo o perdi. Aguardei uma nova carga e consegui manter-me lúcido por alguns instantes. E assim, quase brincando, fui exercitando o desmanche da da frustração pela perda. Aos poucos foram se formando idéias ou conceitos sobre o apego – origem de minha frustração – e o desapego. Essas idéias não foram pensadas por mim: simplesmente surgiram em minha mente nos breves instantes que mantinha a consciência lúcida:

‘De início, quando crianças, tudo nos é explicado pelo mundo adulto, que aceitamos sem questionar. Um dia começamos a perguntar e as respostas do mundo adulto não mais nos satisfazem inteiramente. Depois vamos em busca de respostas mais adequadas às nossas perguntas. Por sermos muitas vezes bem-sucedidos corremos o risco de repetir esta etapa por um tempo excessivo, orgulhosos de nossa auto-suficiência. Mas a vida segue seu curso e novamente as respostas – aquelas que considerávamos adequadas – não mais nos satisfazem e as abandonamos, porque não nos serve mais obtermos as mesmas respostas às nossas perguntas. E, então, acabamos por abandonar também nossas perguntas, exatamente porque nos levam às mesmas respostas. E formulamos outras perguntas para obtermos outras respostas. Assim, damos início a um novo ciclo. Finalmente rompemos o ciclo e deixamos de perguntar. Nem perguntas, nem repostas. Apenas observamos, sem expectativas e sem julgamentos. É então que a vida acontece. É então que a verdade se revela. Contudo, o supremo desapego é abandonar a verdade revelada, uma após outra, despindo-nos da pretensão de conhecer a Verdade Absoluta.’

Naquele dia não entendi em profundidade essas idéias ou conceitos e tenho meditado sobre eles desde então. Contudo, de imediato percebi que perguntar por que Tiaguito entrou em minha vida ou por que saiu não fazia sentido, assim como não faziam sentido as muitas outras perguntas no intervalo entre ambas. O jogo de perguntas e de respostas, que aprendemos a desenvolver com maestria, bloqueia o curso da vida pois não a deixa fluir e nos faz criar apego às coisas e às pessoas.

 

30

 

Dormi pouco e mal, excitado pelos últimos acontecimentos. Fui o primeiro a deixar o albergue e logo estava fora da cidade.

A trilha seguia por dentro de uma mata da qual eu pouco via, à luz da lanterna. Minha única preocupação era manter-me na trilha correta, uma vez que estava sozinho. De repente senti que descia porque tive de mudar meu eixo de equilíbrio e usar os bastões como freio. Não tinha referência nas árvores, apenas via crescer os barrancos em ambos os lados da trilha. Por precaução, diminuí o passo. E o fiz no momento oportuno pois logo à minha frente vi uma mancha escura que não refletia a luz da lanterna. Era água. Pelas marcas, percebi que eu estava num ponto da trilha por onde o gado atravessava um córrego. À direita, o barranco. À esquerda, a trilha estreitava-se, subia e também terminava numa mancha escura. Segui com cautela pela esquerda, para só então ver uma passagem feita de estreitos e instáveis blocos de pedra. Receoso de uma queda, firmava os dois bastões antes de mover os pés, em passos curtos. Eu segurava a lanterna com os dentes, para poder orientar-me sobre a precária ponte. Quando me vi pisando em terra firme suspirei aliviado.

A chuva, gentil, aguardara minha travessia para anunciar-se devagarzinho, para também dar-me tempo de vestir a capa e as calças impermeáveis. Andei por bom tempo acompanhado de nuvens travessas que faziam chover de quando em quando. Osol divertia-se também, ora projetando minha sombra pelas curvas da trilha, ora escondendo-se. Folião mais impetuoso, o vento quebrou o impasse da chuva intermitente, tangendo as nuvens para longe e soprando frio através do bosque de eucaliptos por onde eu passava naquele momento.

 

Era estranho caminhar sem Tiaguito, acompanhado por um incômodo sentimento de perda e pela a saudade de casa, que já começava a pesar num dos pratos da balança, do qual Tiaguito era o fiel, o ponto de união entre dois mundos: o do Caminho, que estava por findar e o do retorno ao lar. Naquele momento tornou-se demasiadamente evidente minha chegada a Santiago de Compostela e minha partida para o Brasil. Triste, reconheci-me infiel vendo Tiaguito escorregar e cair no prato do passado.

A chuva – após uma longa trégua, assegurada por um sol de esperanças – voltou e mostrou a que veio. Sua força rompeu o depressivo dique em que eu havia mergulhado, esquecido das reflexões da noite anterior. A água fria molhava-me os braços e o rosto, revigorando-me o ânimo.

Ao dar-me conta de que eu mudava meu humor ao sabor dos acontecimentos e que deixava minha mente levar-se por pensamentos incontrolados, voltei às minhas reflexões, desta vez em forma de lembranças de meu passado. Não o passado recente, que o Caminho apagava a cada passo que eu avançava. Mas o passado que dizia respeito à minha educação, ao aprendizado do modelo socialmente aceito como normal. Lembranças muito antigas, mas modelos ainda muito atuais de construção da personalidade do ‘cidadão útil’ à família, à sociedade, à religião e ao país.

Contudo, eu tornava-me consciente de que podia modificar o projeto deste ser em construção que sou. Se na fase inicial de minha vida fui construído de acordo com moldes alheios, agora podia reconstruir-me de acordo com um projeto próprio, a começar pela desconstrução de parte do modelo que me fora imposto, para que possa emergir do pântano lodoso da normose. Como conseqüência, eu estava disposto a enfrentar reações de estranheza frente à minha nova forma de pensar e de agir, antes de obter qualquer recompensa desse movimento de resgate.

 

Assim como que do nada, um esquilo surgiu à minha frente, atravessando a trilha. Parou para ter certeza de que estava sendo visto e correu para esconder-se. A cena desconectou-me de minhas reflexões e trouxe-me Tiaguito à mente como uma boa lembrança que, junto com o vigor da chuva, conduziu-me de vila em vila até à minúscula Brea, a cinco quilômetros de Pedrouzo, minha meta do dia. A mochila incomodava, os pés estavam sensíveis e encharcados e a canela voltara a doer. Parei para descansar e almoçar num bar-restaurante, desviando-me da trilha.

Abri a porta mas não entrei, pois estava ensopado pela chuva. Os clientes olharam-me com surpresa. Aguardei até surgir um rapaz atrás do balcão e que fez um sinal com a cabeça como que a perguntar o que eu queria.

“Servem almoço?” – Perguntei.

“Sim, mas por fazer…”

“E o que tem?”

“Vou ver…” – Disse, sumindo pela porta da cozinha, demorando-se um pouco.

Enquanto isso surgiu o dono do bar, que cochichou a seus clientes habituais:

“Por que ele não se vai? Pedrouzo é logo ali…”

Alguns concordaram, balançando a cabeça. Não deixei de ouvir o comentário porque ao longo do Caminho minha acuidade auditiva, assim como a visual, havia aumentado. Naquele momento, eu estava cansado demais para deixar-me incomodar. O rapaz voltou.

“Podemos servir sopa ou salada…”

“E de segundo prato?”

“Filé.”

“Serve.” – Informei, tirando a capa e a calça impermeável molhados, deixando-os do lado de fora da porta, junto com os bastões. Entrei, ajeitei a mochila num canto e fui ao banheiro.

“Cuidado com o degrau!” – Avisou o rapaz e acendeu a luz. Eu senti-me menos só.

Calmamente lavei os braços, as mãos e o rosto e voltei ao restaurante, sentando-me a uma mesa no canto. Sentia que era indesejado. Vez ou outra alguém me olhava de soslaio, mas eu não ia mover-me dali. Precisava descansar, diminuir a dor na perna e, se possível, esperar que a chuva passasse. Mas algo era ainda mais urgente: eu precisava escrever, lançar no papel as impressões que havia acumulado durante a manhã, o que fiz enquanto esperava ser atendido. Algum tempo depois, ouvi o dono do bar dizer aos amigos:

“Ah!, então ele ainda está aí?” – E fez sinal ao rapaz para que viesse anotar o pedido.

Incomodado com os pés molhados, voltei ao banheiro, onde sequei as meias, os pés e o par de tênis com papel-toalha. Ao retornar à mesa, a sopa e o vinho estavam servidos. Uma delícia! Os outros clientes estavam saindo aos poucos, provavelmente para almoçar em suas casas. O dono olhava-me mais amistosamente. Vendo-me com o cálice de vinho na mão, tomou uma garrafa e digiriu-se a mim. Mostrei-lhe a jarra.

“Mau… mau vinho… Este é melhor.”

“Está bem assim, obrigado!”

Notou que o pão não havia sido servido e trouxe um cestinho de pão caseiro, pedindo desculpas.

À medida que os clientes se iam, ele se punha mais à vontade comigo. Acompanhou dois deles até a porta e comentou que ia ventilar a taverna, abriu a porta e trouxe para dentro minhas coisas. Olhou-me e esboçou um sorriso. Eu me divertia com sua mudança de comportamento. Quando já não havia mais nenhum outro cliente, ele mesmo levou a sopeira e o prato e retornou com o filé e batatas fritas, em quantidade suficiente para duas pessoas. No entanto, do bife nada sobrou e das batatas, pouca coisa.

 

“Deseja mais alguma coisa?” – Perguntou o homem, referindo-se à sobremesa.

“Não, obrigado!”

“Pelo menos um café?!” – Tomei o café, paguei e agradeci. Agradeceu também e desejou-me ‘¡Buen camino!’.

Se eu tivesse ficado aborrecido com a encenação do dono do bar diante dos amigos, logo à minha chegada, eu não teria almoçado e nem estaria tão disposto para continuar. O mérito não era meu, mas, sim, da dor, da fadiga e da chuva que me havia encharcado.

 

A chuva cessara. Da porta do bar-restaurante taverna eu podia ver a sinalização do Caminho, em frente e logo adiante; decidi não voltar ao ponto em que havia deixado a trilha, à direita. Senti que estava restaurado quando ouvi o tic-tac dos bastões. Apurei o ouvido: tic-tac, a minha métrica estava ajustada. Tic-tac! Tic-tac!

Segui pela trilha por muito tempo e pensava que já deveria ter chegado a Pedrouzo, pois certamente andara bem mais de cinco quilômetros. Percebi a conseqüência de minha decisão de não retornar à trilha – no ponto em que a deixei para ir ao bar-restaurante – ao passar por uma grande estrutura metálica que sustentava a sinalização de um aeroporto. Então eu soube que jamais chegaria a Pedrouzo pois já estavaem San Paio, quase nove quilômetros além, já no trecho final do Caminho. Perguntei-me que outras surpresas ainda estariam aguardando por mim, hoje, amanhã e depois…

Seis horas da tarde. O Sol agachava-se para olhar-me de frente. Oeste. Santiago de Compostela! Senti que uma grande energia me impulsionava. Nem os pés frios, molhados e doídos, nem a perna, que começava a latejar, tiravam-me o ritmo acelerado. TIC-TAC! TIC-TAC!

Cinco quilômetros para chegar ao Monte do Gozo, meu novo destino. Eu estava perto.

Quatro quilômetros. Seguindo pela arenosa trilha ao lado do asfalto, eu sentia a perna direita latejando no limite do tolerável, desastrada lembrança de Burgo Ranero.

Três quilômetros. Diminuí sensivelmente o passo.

Dois quilômetros. Onde estava o Monte do Gozo, que agora era meu Calvário? Minha mente sabia que era à frente e próximo. Minha perna dizia que o lugar não existia e que eu jamais chegaria.

Um quilômetro. Corpo, mente e alma transformaram-se em perna dolorida. E eu, em que me transformava?

Enfim, escondida pela dobra de uma curva, lá estava. Fui seguindo, tão rápido ou tão lento quanto a dor me permitia, olhando as placas que indicavam a localização do albergue. Sempre à frente. Sempre à frente. As casas da vila ficaram para trás. Lembrei-me, preocupado, como havia me desviado de Pedrouzo. Eu já havia andado quarenta e sete quilômetros naquele dia e já via a panorâmica de Santiago de Compostela estreitar-se em câmara lenta e os prédios avolumarem-se a meus olhos.

Então minha caminhada chegou ao fim. À minha esquerda estava o centro de recepção e apoio ao turista, no qual há um pavilhão destinado aos peregrinos, como albergue. Eu havia saido de Melide havia doze horas e meia…

Designado o dormitório onde iria dormir, despejei todo o conteúdo da mochila sobre a cama e fui jogando a roupa suja no chão, incluindo a que eu vestia, para lavá-la mais tarde. No banho, a água quente foi dissolvendo a sensação apocalíptica que me assolava e fê-la esgotar-se pelo ralo. Deixei que a água quente escorresse sobre a perna dolorida e diminuísse o hematoma, trazendo-me alívio. Voltei a sentir-me vivo.

 

 

Banho tomado, levei minhas roupas à lavanderia do complexo e fui lanchar e brindar minhas aventuras e desventuras do dia e o fato de estar a um passo do final de minha peregrinação. Enquanto esperava que as máquinas de lavar e secar fizessem seu trabalho, enviei mensagens pela Internet à minha família e amigos, dando conta do que se passava comigo: meus enganos, minhas dores, minhas emoções, minhas expectativas…

Com minhas roupas dobradas sob o braço, voltando para o pavilhão-albergue, contemplei maravilhado o piscar de infinitas estrelas e a serena luminosidade da Lua cheia, também ela a me contemplar na noite fria e úmida. Sem pressa de entrar, deixei-me envolver por uma sensação de paz, alegria e realização.


31

 

Ao acordar, dei-me ao luxo de ficar deitado enquanto os outros peregrinos que dividiam o quarto comigo arrumavam suas coisas. Não sei por que, não tinha pressa. Após o café da manhã, ajustei minha mochila às costas e encarei de frente a descida a Santiago de Compostela, que estava coberta de um fino nevoeiro.

Durante o Caminho eu pensava que seria tomado de grande emoção ao chegar à foz onde deságuam as águas peregrinas. No entanto, eu estava mais apreensivo que exultante. O cinturão de modernidade que envolve a cidade absorve muito do impacto que a visão do centro histórico poderia causar. Porém, enquanto progredia em direção à catedral a expectativa foi sendo restaurada e atendida.

Diferente do rendilhado gótico da catedral de Burgos e sem os preciosos e multicoloridos vitrais da catedral leonesa, a de Santiago de Compostela é um monumento à arte barroca. Ela não se eleva, clara e etérea, em direção aos céus. Ela se assenta, firme e escura, sobre a terra. Ela não quer levar os homens a Deus. Quer trazer Deus aos homens. Não é um monumento a Deus-Pai. É um monumento à Mãe-Terra. Nas outras, as torres, seguradas por mãos celestes, sustentam o templo. Nesta, o templo sustenta-se por si só, enraizando suas torres e colunas no útero da Terra. É imponente. É bela. É uma jóia em pedra.

Seu interior apresenta uma subterrânea obscuridade, oposta à semiluz celeste das catedrais góticas. E em oposição às rosáceas e zimbórios destas – que convidam a olhar para o alto-, a compostelana, despida de outros atrativos, convida a focar o olhar no dossel dourado que se sobrepõe ao altar do apóstolo e cuja descrição exige o uso de superlativos. Sentado em seu trono, imobilizado pelo toque de Midas, está São Tiago, todo em ouro e pedras preciosas. Seu cajado peregrino, há séculos sem uso, é apenas um adorno.

Uma cerimônia religiosa havia terminado e eu tinha interesse em rever peregrinos que conheci ao longo do Caminho. Ao sair da igreja, encontrei vários deles e nos falamos rapidamente, parabenizando-nos por haver chegado. Então ouvi uma voz conhecida fazendo uma perguntaem inglês. Era Tony, meu amigo canadense. Abraçamo-nos, felizes pelo reencontro. Mas, ele não desistira da pergunta; parou mais alguém e repetiu-a.

“Perdón, pero no lo entiendo.” (Desculpe, mas eu não o entendo) – Foi a resposta.

“Meu amigo pergunta onde se situa o escritório de acolhida ao peregrino.” – Eu disse em espanhol.

Obtida a indicação, fomos os dois até lá fazer nosso último registro de peregrino.

“Que lhe aconteceu desde a última vez que nos vimos?” – Perguntei, enquanto éramos atendidos.

“Eu senti dificuldades físicas reais e não fui capaz de acompanhar os outros peregrinos, ao longo do Caminho. Constantemente, encontrei-me caminhando sozinho e, muitas vezes, não parava para comer uma refeição apropriada como deveria, preocupado em alcançar o próximo albergue a tempo.”

Ambos admiramos nossos certificados de peregrinos do Caminho – la Compostelana -, agradecemos e saímos à rua, em busca de uma agência de turismo, ele para informar-se sobre um vôo a Paris e eu para obter informações sobre como antecipar meu retorno ao Brasil.

“Deve ter sido angustiante ver-se tão só.” – Eu falei, reatando nossa conversa.

“A maior satisfação dessa peregrinação foram os amigos peregrinos que como você saíram de seu caminho para ajudar-me quando isso foi necessário. Aquele e-mail que você enviou por mim de Zubiri foi a primeira de muitas, muitas formas das pessoas me ajudarem. Alguns compartilharam comigo sua comida; outros convidaram-me à sua mesa  para uma bebida; outros, ainda, cuidaram de mim quando eu estive doente.” – Tony falava com candura, sem perceber que era esse seu jeito de ser que atraía naturalmente a solidariedade sempre presente entre os peregrinos.

Quando voltamos à catedral, Tony disse-me que havia decidido instalar-se num hotel, pois precisava de conforto e repouso. Ele perdera dez quilos durante sua peregrinação e percebia-se que ele estava, realmente, muito cansado. Por dois ou três trechos havia vindo de ônibus para terminar a peregrinação na data prevista.

“Concluí o Caminho graças à minha determinação e, tenho certeza, à ajuda do bom Senhor.” – Afirmou sereno, sincero e reverente. – “Eu rezei com freqüência durante minhas horas de solidão e senti que Ele me amparava. Minha saúde permitiu-me andar somente quinhentos e cinqüenta quilômetros e eu jamais havia feito uma caminhada tão longa como esta. Não posso pensar senão que eu tive ajuda do Alto.”

Comovido, fiquei sem fala. Então, nos despedimos prometendo nos reencontrar mais tarde.

Antes de procurar o albergue, fui à agência de correios retirar o pacote que enviara de Burgos e que continha roupas, livros e postais.

 

Choveu boa parte da tarde e preferi ficar no albergue, organizando minhas coisas e minhas idéias, entre as quais a de antecipar meu retorno ao Brasil, pois o tempo de que dispunha e a perna machucada não permitiam que fosse a Finisterra como eu havia decidido nos últimos dias. Também tinha uma forte percepção de que minha participação no espetáculo do Caminho havia terminado e que era necessário sair de cena. Havia ainda outro motivo, talvez o mais importante: era hora de voltar a minha gente e a minha terra.

Olhei em direção à catedral emoldurada pela janela. Um sol indeciso iluminava suas torres e os telhados do casario próximo. Nuvens apressadas fugiam a galope em desorganizada debandada. E eu, melancólico, com a linha do horizonte costurei meu coração rasgado pela saudade.


32

 

Após uma tranqüila noite de sono, saí do albergue já com a mochila às costas e a deixei depositada no escritório de acolhida ao peregrino. Eu estava decidido retornar ao Brasil ainda naquele dia, motivo que me levou novamente ao escritório da companhia aérea. Isto feito, retornei a passos lentos ao centro histórico, conectado com o espírito das águas peregrinas que encarnara por quatro semanas ao fluir no leito do Caminho-rio. Decidi que mesmo não sendo católico iria assistir à missa dos peregrinos, a ser oficiada ao meio dia. Eram também o local e o momento apropriados para rever Tony, Bob, Aaron, Graciliano e outros companheiros de peregrinação.

 

O ambiente medieval do templo pareceu-me ser um teatro obscuro e misterioso. O cenário – o dossel dourado, que cobre o altar – brilhava à luz de refletores. O som metálico e vigoroso do imponente órgão anunciou o início da primeira cena. Então, o bispo de Santiago de Compostela entrou na catedral, seguido de um séqüito de religiosos paramentados de vermelho, e dirigiu-se ao altar, onde já o esperavam outros padres. O dourado do cenário e o vermelho dos paramentos contrastavam e complementavam-se, a um só tempo. A música tornou-se suave: a missa ia começar.

Principal ator no palco litúrgico, o bispo saudou e abençoou solenemente os peregrinos presentes em seus respectivos idiomas. A voz do celebrante soava absoluta em meio ao respeitoso silêncio. Essa benção representa a invocação da proteção de uma divindade universal e arquetípica, enraizada profundamente nos corações de crentes e descrentes.

Mesmo alheio aos rituais católicos, o cerimonial da missa concelebrada impressionou-me por sua imponência. Cada uma das pedras da vetusta catedral é impregnada de incontáveis preces e votos de fé peregrina de muitas gerações de celebrantes e de fiéis. Apenas São Tiago, pacientemente sentado em seu lugar de honra, mantinha-se imperturbável à cerimônia e ao constante fluxo de pessoas que passavam às suas costas para abraçá-lo. Parecia reconhecer em si próprio o mítico e místico personagem cultuado ali como se fosse um semideus.

A missa ia adiantada. Fui à procura de um lugar onde pudesse sentar e de onde pudesse ver o ritual do incensário – o ‘botafumero’ -, que aconteceria ao final da missa. Sentei-me na base de uma das colunas, num ângulo que não me permitia ver o altar. Passei a acompanhar a cerimônia por uma das telas de TV do interior do templo que davam apenas uma pálida imagem da riqueza do cenário e da cena litúrgica que se realizava.

Quando o enorme incensário foi lançado em seu movimento pendular (tic-tac!) entre as colunas enegrecidas pela fumaça, levantei-me para apreciar o espetáculo. Neste momento, uma pequena mão segurou-me a mão direita. Com o outro braço Tiaguito apontava para o alto, para o vai-e-vem do ‘botafumero’, que quase alcançava o teto. Por alguns instantes, não vi mais nada. Meus olhos embaçaram-se com emotivas lágrimas e a muito custo contive os soluços. Coloquei minhas mãos às costas do menino e precisei apoiar-me nele para manter-me em pé. Aos poucos, o‘botafumero’ foi reduzindo sua amplitude, até ser travado pelos operadores do mecanismo. Então Tiaguito e eu nos abraçamos. Ele, também alegre pelo reencontro, apontou insistentemente para o altar. Lá, entre os concelebrantes, estava o padre Eduardo, que balançou discretamente a cabeça, sinalizando que também me via. Terminada a cerimônia, tão logo dispensado pelo bispo, padre Eduardo veio juntar-se a nós e nos conduziu para fora da catedral. Sugeri que fôssemos almoçar.

 

Já no restaurante, eu falei ao padre em que estado havia chegado a Melide e no dia seguinte ao Monte do Gozo. Naquele momento, já podia falar com bom humor do suplício pelo qual havia passado.

“Você não pode queixar-se. Eu bem que lhe ofereci uma carona, pois vi que seu estado não era nada bom. Mas é típico dos peregrinos imporem-se algum sacrifício, como resistir à dor, fome ou sono e construir seu próprio calvário. Parece-me que é desnecessário acrescentar sacrifícios às naturais dificuldades e desconfortos do Caminho… – Interrompeu-se repentinamente e sorriu de seu comentário, acrescentando: – Desculpe o sermão, é a força do hábito…”

“É, é a força do hábito…” – Eu ecoei e rimos do duplo sentido da expressão.

“Tiaguito, logo após o enterro da mãe, mostrou-se impaciente por rever você. – Infromou o padre. – Ao que parece, ele não ficou satisfeito consigo mesmo pela reação que teve quando você se despediu de nós, em Melide.”

“A reação dele deixou-me confuso e triste naquele momento. Mas é bom estar revendo vocês.”

O menino comia vorazmente seu macarrão e olhava ora para mim, ora para o tio, acompanhando o movimento de nossos lábios. Seus olhos sorriam sem demonstrar que ele estivesse afetado com a descoberta tardia da identidade da mãe. Devo ter fixado nele o olhar por um longo tempo antes de perceber que o padre se calara, aguardando que ele lhe desse atenção.

“E, quanto a você, quanto tempo ainda vai ficar na Espanha?” – Perguntou.

“Resolvi antecipar meu retorno e embarco ainda hoje para o Brasil.”

“Então este é nosso almoço de despedida. Também nós daqui a pouco voltamos a Luquin.”

“Pretende chegar lá ainda hoje?”

“Não, não temos pressa. Além disso, são quase650 quilômetros, até lá. É mais provável que iremos dormir em León e seguir viagem amanhã. Assim, posso rever alguns amigos e agradecer pessoalmente à madre superiora por tê-los livrado do excessivo zelo do hospitaleiro.”

Talvez adivinhando o que se passava comigo por alguma expressão facial que me traía, continuou, implacável e incisivo:

“Ouça!, a maior parte dos hospitaleiros de albergues religiosos são voluntários, mesmo assim, são bem selecionados. Para azar de vocês, foram encontrar um que é exceção à regra… – Aguardou que eu tomasse consciência de suas palavras e então continuou num tom mais amistoso: – Esses amigos que vou rever também são ou foram hospitaleiros, excelentes hospitaleiros, que conheci na época em que também eu, ainda seminarista, fui voluntário em vários albergues do Caminho.”

Balancei a cabeça, concordando, mais para apaziguá-lo que para apaziguar a mim próprio. Com um dedo, fiquei brincando com uma gota de vinho que caíra na borda do prato. Padre Eduardo seguia meu movimento e, conhecedor de almas, também atento à minha tristeza com a despedida já próxima, inclinou-se um pouco para frente e confidenciou-me:

“Sabe, Tiaguito é uma benção, um presente que a vida me deu. Sou celibatário por opção e convicção e, no entanto com ele, sangue de minha família, posso vivenciar o que é ser pai… – Sorrindo, fez um afago nos cabelos do menino e acrescentou. – Em breve vou pedir à Cúria para ser transferido para um centro maior, onde hajam melhores recursos médicos. Pretendo fazer com que Tiaguito seja examinado, quem sabe algum tratamento ou aparelho possa dar-lhe a audição, mesmo que parcial…”

“Seria formidável! – Exclamei com entusiasmo. – Isso mudaria por completo a vida dele.”

“Sim, é nisso que estou pensando: em torná-lo melhor preparado para a vida adulta.”

“Isso leva tempo… E, quanto à liberdade que ele tanto preza?”

“Já conversamos sobre isso, Tiaguito e eu. Com a descoberta da mãe, sua busca parece ter terminado, assim como sua necessidade de vagar entre as vilas. Além disso, a peregrinação que fez em sua companhia parece tê-lo disciplinado… – Percebendo em mim uma reação de contestação, fez um sinal para que me contivesse. – Não, não entenda mal! A própria rotina diária da peregrinação exige disciplina, concorda? A confiança que ele depositou em você, o fez abrir mão de sua independência e ele se deixou guiar. Até mesmo a determinação, que você intuiu em Tiaguito, o fez manter-se firme em seu propósito. – Fez uma pausa, para então concluir: – Ele já não é o mesmo. Creio que superou uma fase importante de sua vida, que amadureceu…  Acredito que agora será mais fácil para ele assentar-se, criar raízes…”

“Mas, o Caminho ensinou-me que não se deve criar raízes muito profundas.” – Falei, admirado e confuso com sua afirmação.

“Tudo a seu tempo, meu amigo. O tempo de Tiaguito é outro, diferente do seu. Neste momento, ele precisa enraizar-se.”

Tiaguito chegou-se ao tio e disse-lhe algo por sinais. O padre então dirigiu-se a mim:

“Fale-me um pouco de Gertrudes…, creio ser este o nome”

“Gertrud?” – Eu estava surpreso com a referência e olhei para Tiaguito, que me sorria e fazia caretas.

“Sim, Gertrud! Parece que ela foi muito importante para Tiaguito.”

Tentando aparentar indiferença, eu disse:

“Gertrud é uma peregrina alemã que conheci em Roncesvalles e com quem caminhamos juntos até Olmos de Atapuerca, onde a perdemos ao deixar o albergue. Ainda tivemos oportunidade de nos despedir dela em Burgos um dia depois.”

Pensei em deixar esse assunto por isso mesmo. Padre Eduardo, tão atento à minha reação quanto às minhas palavras, insistiu:

“Opa! Ao que parece a moça deixou marcas em você também, meu amigo.”

Senti-me pouco à vontade com a lembrança que expôs uma parte sensível que eu buscava encobrir. Percebendo meu constrangimento, padre Eduardo disse:

“Desculpe!, parece que fui inconveniente. Mas, não fique zangado comigo. Fale apenas sobre o que Gertrud representou para Tiaguito.”

Dei um inesperado suspiro. Mais controlado, reconheci:

“Creio que procurar esquecê-la foi apenas uma forma de enganar-me. Ela representou muito para mim também.” – Olhei em direção à cadeira vazia a meu lado e avancei a mão buscando a mão de Gertrud, como se a intensidade da lembrança pudesse materializá-la. Meu gesto não passou despercebido a meus amigos. Padre Eduardo, respeitoso, baixou levemente a cabeça e Tiaguito, solidário, disfarçou o olhar. Recuperado, continuei:

“Logo que Tiaguito nos encontrou em Cirauqui, Gertrud tentou ignorá-lo e o menino não pareceu perturbar-se. No entanto, sem que ela soubesse que iríamos dar em Luquin, foi por sugestão dela que nos desviamos para lá. Após eu aceitar Tiaguito como companheiro de peregrinação, Gertrud nos evitou por algum tempo. Seu sobrinho, como sabe, é um mestre da conquista e tantas fez até que ela rendeu-se a seu encanto. A partir daí, ela – que fora tão distante e controlada -, tornou-se meiga e atenciosa e ele, mais tranqüilo e alegre.”

“Uma família!” – Exclamou padre Eduardo.

“Como assim?”

“Sim, uma família! Tiaguito uniu vocês entre si e os dois a ele. Consciente ou inconscientemente ele criou uma família para si mesmo.”

“Sim, é possível. De certa forma, isso explica porque ele sofreu tanto quando perdemos contato com ela.” – Pareceu-me então ver Gertrud sentada a meu lado, sorrindo para nós. Tiaguito e o tio olharam por um instante a cadeira vazia e sorriram. Estariam sorrindo para a Gertrud que eu imaginava ver ou em homenagem a ela ofereciam-lhe o sorriso e a cadeira?

Ainda falamos por um tempo, após termos terminado o almoço, mais recordando que nos despedindo. Tiaguito abraçou-me e beijou-me a face, pela primeira e última vez. Presenteei-o com um cordão de couro e um pingente de prata em forma de concha, símbolo do Caminho, e que eu havia usado ao longo de toda a peregrinação. Ele, por sua vez, surpreendeu-me ao dar-me seu cajado entalhado como seu nome e título: ‘Santiaguito’. Tentei recusar.

“Aceite – sugeriu o padre, – Tiaguito contou-me como o recebeu e também ele quer dá-lo a ‘alguém com coração’.”

O fato de estarmos a uma mesa num canto do restaurante poupou-me do constrangimento de tornar pública minha emoção. Padre Eduardo agradeceu-me por trazer Tiaguito comigo em peregrinação e por ter sido confidente dele próprio e despediu-se de mim com um forte aperto de mão. Os três queríamos apressar o ritual de despedida, assim eu esperei que eles se fossem para só então deixar o restaurante.

 

Eu já tinha comigo a mochila preparada para a viagem e caminhava junto à catedral, quando vi gaivotas sobrevoando o local, como que a lembrar-me de Finisterra – o mítico “Fim da Terra”, na concepção medieval -, cujas praias repletas de lendas e tradições eu não percorreria. Os jovens australianos com quem eu me encontrara mais de uma vez passaram por mim e, vendo-me de mochila às costas, perguntaram-me:

“Estamos indo a Finisterra, quer vir conosco?”

Respondi-lhes que ia voltar ainda naquela noite ao Brasil. Um deles, apontando as gaivotas, disse alegremente:

“We are going to Finisterra for you too!” (Estamos indo a Finisterra por você também!).

Peregrinas palavras. Peregrina solidariedade. Confiante em que iriam adiante também em minha intenção, agradeci-lhes comovido e desejei-lhes ¡Buen Camino!

Quanto a Tony, foram vãs minhas esperanças. Não tornei a vê-lo.


33

 

Saí da Espanha pela porta do outono e cheguei ao Brasil pela porta da primavera. Naquela noite haveria um eclipse lunar. Seria um presságio?

Acordei de madrugada, ainda sob o efeito da diferença do fuso horário. A Lua, cheia de intenso orgulho, renascera do eclipse e espiava-me curiosa e parecia dizer ‘Pois não te vi em terras de Espanha, ainda ontem?’, e sorriu-me.

Cochilei por mais algum tempo.

Quando a aurora pintava suas primeiras luzes rente à moldura do horizonte, voltei a acordar, desta vez pelo cantar dos pássaros. E saudoso e maravilhado deixei-me ficar ouvindo o pipilar telegráfico dos tico-ticos, as boas vindas do bem-te-vi, o estridente grito de alegria do joão-de-barro, a veemente assertividade dos quero-queros em pleno vôo, o melodioso arpejo do sabiá e, ao longe, no mangue, o riso-lamento da jacutinga. E eu, na cama, sentindo a estranha sensação de voltar ao que me é familiar, tendo que reabilitar-me aos espaços físicos, antes tão conhecidos e recriar os espaços psicológicos, antes tão definidos…

Ao levantar-me, assustei-me ao ver um homem barbudo e magro a olhar-me do outro lado do espelho. Sem pudor, deslizei o olhar por seu corpo nu, procurando reconhecê-lo por algum detalhe, alguma cicatriz, alguma das costelas aparentes. Encarei-o face a face. Admirei-lhe a barba encanecida e os cabelos curtos e ralos. Apiedei-me de seus lábios rachados e das rugas recentes. Quando encontrei seus olhos, vi que me observava com igual interesse e intensidade. Mas tinha um olhar mais doce que o meu e sorriu para mim. Reconheceu-me antes que eu o reconhecesse mas não teve pressa em dizer-me, pois eu ainda estava receoso da presença daquele estranho que me parecia ter visto antes, algum dia, em algum lugar, não no passado, mas no futuro. E ele me olhava insistente como a indagar: ‘Então ainda não sabes quem eu sou?’. E desfazendo minha inércia, acrescentou: ‘Vem!, vamos trocar de lugar’. E o estranho saiu do espelho e nele me fez entrar. Olhando-o através do cristal, enfim o reconheci: era eu, não o eu conhecido, mas o eu futuro, que projetara ser…

Então sorrimos um para o outro e nos dissemos: – “¡Buen Camino!”