Caminho Francês: caminhando ou de bicicleta?

Caminho Francês:
caminhando ou de bicicleta?

Itamar Oliveira Vieira

O Caminho de Santiago é uma das mais antigas vias de peregrinação da cristandade. Existem muitos caminhos para se chegar a Catedral de Santiago de Compostela, onde está enterrado o apóstolo Tiago. Fizemos o Caminho Francês, partindo de Saint Jean Pied-du-Port. Em 2010, como peregrino e como ciclista em 2012.

Existem muitos fatores que nos induzem a fazer a escolha por diferentes formas. O presente relato vai abordar nossa experiência, vivências, observações que fizemos durante estas duas diferentes formas de percurso do Caminho. Há pessoas que têm mais facilidade para um dos tipos de locomoção, assim acredito que este depoimento possa motivar e animar a tomada de decisão e não retardar a curtição desta maravilhosa viagem pelo Caminho de Santiago de Compostela.

Como peregrino, realizei o Caminho Francês na companhia de minha esposa Gladys. Como somos praticantes de corridas há longo tempo, não necessitamos muito do condicionamento físico para fazê-lo. Mas nos informamos, principalmente quanto à obtenção de roupas, botas para caminhada, capa de chuva, mochila, etc. Treinamos caminhadas em nossa região – Circuito do Vale Europeu, Interpraias de Balneário Camboriú – , para nos adaptarmos a longa caminhadas, ao uso de botas e da mochila com peso. Fizemos nosso plano para completarmos nossa peregrinação em torno de 30 dias, com uma pequena reserva de dias para eventuais imprevistos.

Quando iniciamos o preparo para o caminho de 2012 de bicicleta, eu estava num período de ciclismo regular, no mínimo duas vezes por semana. Meu companheiro mais regular de bicicletadas, Aldolino, também queria pedalar na Europa.

Quando marcamos a data para fazer o CF de bicicleta, procuramos obter mais informações em livros, contatamos com pessoas que já haviam feito o percurso assim como pesquisamos na Internet. Ao mesmo tempo, aumentamos nosso volume de treino semanal, inclusive aumentando o grau de dificuldade, em percursos em nossa região. Fomos preparando a bicicleta, adaptando bolsas e alforjes. Baseado em informações, acertamos também o que levaríamos e o peso mais recomendado. Planejamos iniciar em Saint Jean Pied-du-Port, mas tínhamos dúvida se deveríamos seguir pelo caminho dos peregrinos ou por estrada asfaltada – carretera, para os espanhóis. Esta dúvida ficou até duas semanas antes da partida para Espanha.

Em 2010 tomamos o avião em Florianópolis e à noite seguimos para Madrid e Pamplona. De lá, fomos de taxi até Saint Jean Pied-du-Port. Nossa viagem para esta cidade, em 2012, foi mais trabalhosa. Há serviços que disponibilizam bicicletas nas cidades onde se quer iniciar o Caminho, mas Aldolino e eu optamos por levar as nossas, acondicionadas em caixas onde juntamos nossos pertences necessários para toda jornada. Tomamos o avião em Navegantes e de lá seguimos até Madrid. De Madrid, optamos em ir de ônibus até Pamplona, porque era mais fácil do que de trem. Chegamos depois das 22h em Pamplona, mas conseguimos um taxi que nos levou até Saint Jean Pied-du-Port. A cidade estava em festa, mas conseguimos o último quarto disponível na cidade. Um milagre. Realmente um milagre, que nos deu bastante fé e energia para iniciar nossa bicicletada no outro dia.

Em 2010, no aeroporto de Guarulhos, uma senhora espanhola que já fizera o Caminho se aproximou de nós e nos falou sobre o Caminho de Santiago, recomendando que nos primeiros três dias de caminhada o fizéssemos lentamente. Isto foi um conselho muito sábio e nos preveniu de bolhas e lesões nos membros inferiores. (A ideia vale também para o ciclista: não tenha pressa nos primeiros dias.) Habituamo-nos a acordar às 6 horas e, após o desjejum, caminhávamos até próximo das 16 – 17 horas.

Apesar de gostarmos – eu e Gladys – de caminhar juntos, muitas vezes ficamos com pessoas e grupos diferentes. Isto facilita conhecer mais peregrinos, compartilhar mais experiências. Por muitos dias caminhamos juntos com um grupo grande de italianos que estava fazendo pela primeira vez também este Caminho. Outros grupos de espanhóis compartilharam por vários dias suas agradáveis companhias. Alemães, franceses, americanos, canadenses, holandeses, austríacos; australiana, chinês, latino-americanos e de outros países mostravam suas diferenças e semelhanças, mas todos tinham um só objetivo: vencer suas deficiências físicas, esquecer suas rotinas diárias habituais, vivenciar cada momento no Caminho, fazer reflexões e chegar ao próximo lugar para descansar e pernoitar, porque a cada dia tinham um novo desafio. Passados alguns anos, ainda mantemos contato com estes peregrinos. Amizades que se formam e duram.

Geralmente, se pedala de duas a três vezes mais quilômetros em relação ao caminhado. Inicia-se a bicicletada mais tarde em relação ao início da caminhada – em torno das 8 horas, enquanto que muitos peregrinos começam a caminhar até antes das 6 horas, nos meses de verão para se expor menos ao calor. O ciclista prefere iniciar as pedaladas com a luz do dia e encerra a jornada diária depois das 18 horas, quando os albergues podem estar completos, principalmente no verão.

Nós não fizemos reservas para dormir, tanto quando caminhamos como quando pedalamos. Seguimos caminhando ou pedalando até alcançar o lugar alvo, onde procuramos um albergue público disponível. Esta prática de pernoitar em albergues públicos tem o objetivo de ter contanto com o maior número de pessoas de diferentes países.

A ceia geralmente ocorria às 19 horas. Fazíamos nossa escolha alimentar no menu do peregrino acompanhando uma garrafa de vinho local. Era o momento em que mantínhamos contato com maior número de peregrinos e quando trocávamos confidências. Falávamos sobre nossos locais de origem, nossas famílias, trabalho, gostos pessoais e, frequentemente, sobre o porquê estávamos fazendo o Caminho. Sempre abordávamos como foi o dia passado e discutíamos o plano para a próxima jornada. Qual o objetivo do próximo dia, lugares relevantes a serem visitados e também em qual albergue pretendíamos pernoitar. Após a ceia, só nos restava entrar no albergue antes das 22 horas, para merecido descanso, quase sempre em beliches. Algumas vezes o ronco de peregrinos atrapalhou nosso sono, mas não prejudicou nosso convívio.

Comparando os modos de fazer o Caminho de Santiago – a pé ou de bicicleta -, noto que cada um tem suas peculiaridades e dificuldades. Depende muito do histórico de atividade física do pretendente de fazer esta jornada. Para mim, necessitei melhorar meu condicionamento físico para o uso da bicicleta, mas tem indivíduos que pedalam mais frequentemente, não sendo isto uma dificuldade. Mas, para ambas modalidades, há necessidade de estudar bem o Caminho, preparar o “enxoval” apropriado. Quando falo em enxoval me refiro à toda roupa ajustada à estação que vai encontrar. De um modo ou de outro, temos que minimizar o que levamos, se não a coluna ou as pernas vão reclamar e vai faltar energia.

Muitas pessoas caminham muitos quilômetros cada dia – fazendo o Caminho muito rapidamente. Perdem de visitar ou curtir mais muitos dos pontos importantes do Caminho. Observei que os ciclistas, especialmente se estão em grupo, pedalam rápido, preferindo as carreteras. Com isto em poucos dias chegam a Santiago. Quanto a nós, Aldolino e eu, tínhamos um mapa para nos orientar no percurso, que nos informava a rota do Caminho Francês que o peregrino a pé faz. Em certos locais, onde ficava muito difícil trafegar pedalando, este mapa fornecia alternativas para seguir e opção de retorno ao Caminho na sequência.

Procuramos fazer o máximo do Caminho dos peregrinos a pé, que passa mais pelos pueblos e suas igrejas, assim como pelas cruzes antigas que orientavam os peregrinos de séculos atrás. Isto dava chance ao meu companheiro de ver também estes sítios icônicos, mas por vezes eu tinha a intenção de passar por lugares que evocavam boas recordações e de reviver momentos de grande emoção de quando tinha passado como peregrino a pé.

Falando em recordações e emoções, o ritmo mais rápido da bicicleta tira nossa concentração do que está em volta do Caminho, diminuindo a intensidade de nossas percepções. O esforço suplanta nosso estado de contemplação. Há também uma outra grande diferença no modo de fazer o Caminho Francês, ou qualquer outro caminho, a pé ou de bicicleta. Caminhando se sobe morros e montanhas mais lentamente e não se cansa tanto. De bicicleta, há um grau de exigência física muito forte. Isto foi percebido na subida dos Pirineus e muito especialmente nas subidas do Alto del Perdón, de Foncebadón e do Cebreiro. Com exceção do Alto del Perdón, nas outras subidas fomos pela carretera.

Como peregrino, em 2010, via os grupos de ciclistas como atletas que estavam fazendo uma competição. Todos, sempre, com pressa. Uma peregrina da Austrália, fez o seguinte comentário: “estes ciclistas são muito fortes e atletas, passam tão rápido, não parece que estão fazendo o Caminho de Santiago de Compostela”.

Ainda nos primeiros dias de nosso caminho, tive a grata satisfação de encontrar o primeiro ciclista. Um mineiro, que estava no momento descansando, mas fazia o Caminho de modo lento, mais contemplativo. Este me parecia que estava curtindo o Caminho. Em León, na catedral e em outros locais da cidade, encontrei um casal de brasileiros, que também estava fazendo o Caminho de forma lenta, com senso de observação bem aguçado. São contrapontos bem esclarecedores, mas que dizem que o ciclista também pode fazer o Caminho de uma forma que possa extrair grandes aprendizados e não só condicionamento físico.

Como ciclista, apesar de ter pouco tempo para realizá-lo, procurei fazer de uma forma não excessivamente veloz. Seguindo pelo melhor caminho sugerido pelo mapa, mas passando e parando nos pontos mais importantes de cada dia. Mesmo assim, meu companheiro, um dia falou: “Ainda voltarei para o Caminho com minha esposa, para fazê-lo a pé. Assim terei oportunidade de curtir tantos lugares sensacionais.”

Três situações me chamaram a atenção durante nosso caminho de bicicleta em 2012. Em Burgos, encontramos um casal de suíços, com uma criança de menos de dois anos. Eles tinham saído de sua cidade, o marido e a mulher, cada qual com sua bicicleta com uma carretinha de carga. Ele – o pai – levava a criança na sua carretinha e a mãe, a barraca e o restante das cargas. Fiquei imaginando como subiram Montes de Oca. Outro caso que enriquece as possibilidades de como fazer o Caminho, ocorreu já depois de Melide. Era um casal de terceira idade, holandeses, próximos dos 80 anos: eles tinham iniciado o Caminho em Amsterdam. Vejam a distância percorrida.

No Obradoiro, conversamos sobre nossas experiências de fazer o Caminho de bicicleta com um casal de espanhóis, com mais de sessenta anos, que iniciou o Caminho numa cidade próxima de Barcelona. Registramos nossas chegadas quase no mesmo momento. Eles utilizaram bicicletas com sistema motorizado. O Caminho de bicicleta também pode ser uma forma alternativa para quem teve algum imprevisto. Uma peregrina canadense, teve uma dor no quadril que a impossibilitava de caminhar. Depois de recuperar-se, mas sem conseguir caminhar, alugou uma bicicleta e, pedalando, completou o Caminho. São exemplos de modos e oportunidades do uso da bicicleta para fazer este maravilhoso Caminho.

Como já fizera o Caminho a pé, na condição de ciclista, sempre tinha muito respeito e atenção pelos peregrinos a pé. Especialmente, quando tinha que passar por eles. Muitas vezes o peregrino pode estar em estados meditativos ou contemplativos, sem se preocupar com o que ocorre ao seu redor. Se o ciclista não tiver esta atenção pode causar acidentes.

E mais, nestas comparações entre fazer o Caminho a pé ou de bicicleta, me ocorre outra situação. Em quais estações do ano é melhor para fazer um ou outro? Nos meses mais frios – novembro a fevereiro -, com risco de neve, diminui bastante o número absoluto de participantes, mas se nota uma redução significativa do percentual de ciclistas. Já nos meses de abril a setembro o percentual de ciclistas aumenta. Como pedalamos em agosto, a temperatura predominante durante o dia era acima de 30 graus centígrados, às vezes atingindo os 37 graus, apesar do ar quente ainda pedalava sem o desconforto que percebia nos peregrinos a pé, como ocorre na região das mesetas. O ciclista o faz sem desconforto extremo.

O Caminho Francês é Patrimônio da Humanidade. A maioria o faz a pé, um percentual significativo e crescente em bicicleta. Alguns a cavalo e poucos em suas cadeiras de roda. A experiência de fazê-lo de bicicleta foi muito rica, exigiu muito esforço físico. Valeu muito a pena. Meu companheiro foi essencial para que eu pudesse completar todo percurso.

Tenho a seguinte convicção quanto ao número de ciclistas para fazer juntos o Caminho: num grupo muito grande vai imperar a opção de competir. O que não é bom. O número de dois ou três funciona bem para manter o ritmo e atender às paradas que alguém sugere. Fazer sozinho tem o problema de segurança e falta de alguém com quem compartilhar nesta longa jornada. Fizemos em dois e constatei como sendo organizador e guia a reponsabilidade que tinha, mas a força que cada um dava ao outro foi de uma riqueza muito grande.

Quanto a fazer o Caminho a pé, minha preferência é fazê-lo em pequenos grupos. Bem cedo, a força da união vai atrair outros peregrinos para seu lado. Quando caminhamos, fazemos nossas reflexões internas, recuperamos lembranças muito antigas e esquecidas, como há oportunidade de compartilhar vivências e aspirações com seus companheiros de momento. O Caminho é longo, passam-se os dias, juntam-se novas companhias na caminhada por algum tempo, passam-se mais dias, novas companhias; voltam antigas companhias, que se comportam como amigos de longa data que se encontram. Uma festa! Mas, a festa maior ocorre quando se encontram os peregrinos já em Santiago de Compostela, defronte à Catedral, na grande praça do Obradoiro ou, especialmente, na missa do peregrino.

Ocorre que em poucos dias temos que voltar para nossas cidades distantes, para nossas atividades funcionais, mais reais e menos espiritualizadas. Sentimo-nos meio divididos, gostaríamos de continuar caminhando ou pedalando, vivendo tanto momentos felizes em vez de tomarmos o caminho da separação e da distância. Mas, o mais importante é que ficamos marcados. Marcados para sempre pelos Caminhos de Santiago. Tão marcados que, se não voltamos, temos grande vontade de fazê-lo novamente.

Ao finalizar este relato tentarei responder a questão de qual forma é a melhor para fazer o Caminho Francês. Mas antes alguns dados importantes. O Caminho pode ser feito de várias formas e modos. Caminhando, depende de nossa disponibilidade de tempo e de nossa pressa. Entre 32 e 35 dias dá para aproveitar bem os lugares mais importantes. Planejando deixamos uns dias a mais para imprevistos. Alguns por contar de poucos dias livres optam em fazê-lo dividido em partes, às vezes em estações diferentes.

Para percorrer o Caminho Francês de bicicleta, dando-se preferência para seguir o Caminho do peregrino a pé, quando recomendado, em 13 a 15 dias seguidos faz-se com bom aproveitamento. Quanto ao melhor modo de percorrê-lo, depende da experiência prévia. Se é um ciclista experiente, poderia fazê-lo pedalando, mas que não se ponha nesta viagem maravilhosa – física e espiritualmente – como se estivesse numa prova atlética. Como este Caminho é para ser vivido conscientemente cada momento, compartilhado com outros companheiros, me realizei mais fazendo este caminho a pé.