Simplesmente Mãe

Autor: Lígia Maria Knabben Becker

Ela não estava certa de escolher o melhor caminho. O fato é que sabia olhar o céu e determinar a vinda ou não do sol, a direção no sopro dos ventos no balanço das árvores e até o cheiro da maré rasa ou cheia e calcular a hora em que o recuo das águas aconteceria.

Quando o mar se encolhesse o necessário, faria a travessia. Em épocas idas o mesmo movimento tinha sido considerado um milagre, só que o mar da sua terra não era vermelho. Ela possuía a força das pedras em seus ossos e dentes, o mecanismo da respiração das plantas em seus pulmões e toda aquela maravilha de água salgada e doce escorria-lhe nas veias feito o oceano, mares, rios, riachos sobre a terra.

A natureza mostrava-lhe seus frutos para alimento, raízes, folhas e plantas curadoras sempre confiante na lucidez daquela mulher que em um átimo de segundo poderia se transformar na guerreira capaz de afugentar todos os perigos que a rodeavam bem como ao pequenino ser grudadinho as suas costas adormecido dentro do cesto trançado por ela, pacientemente.

Coletava plantas da natureza (e esperanças também) o suficiente para o tempo de algumas luas e retornava satisfeita para mais uma travessia.

Era mãe. Curadora. Simplesmente mãe.

Ao longo de suas margens, o mar sempre fora o guardião dos segredos e dores ancestrais, dos gemidos de numerosas mulheres como as desventuradas espartanas que choraram rios de sentidas lágrimas pela morte de seus filhos em combate fútil (como são sempre todos os litígios pelo poder). Arrancavam seus cabelos com as próprias mãos e feriam as faces com as unhas até o sangue correr pelos seus sulcos.

Eram mães. Sofridas, simplesmente mães.

Distante, lá onde não se avistava mais a terra o mar unia-se ao céu em bodas azuis, uma mulher preparava o alimento para aquele dia. Satisfeita estava com a colheita do dia anterior quando havia conseguido reunir uma boa quantidade de grãos espalhados pelo chão do armazém onde trabalhava como ajudante de limpeza no porto. Enquanto os sacos generosos eram lotados com feijão, desatava-se a pensar que às vezes a pressa era amiga da perfeição. Senão como explicar a panelada que agora cozinhava com a sobra do ensacamento do precioso feijão? Só assim ela poderia garantir mais uma refeição para seus sete filhos.

Era mãe. Provedora, simplesmente mãe.

Do outro lado do planeta, uma jovem mulher preparava-se para a lida de mais um dia no povoado que a acolhera depois da sua fuga da casa paterna. Fugira do preconceito e conceito sobre uma maternidade que deveria ser interrompida por estar fora da instituição que a atrelaria a um homem, e desafiadora, em seus quatorze anos de vida, era o ser feminino que se duplicaria em masculino também. Madura estava sua decisão de proteger a criaturinha gestada e assumir as consequências da sua escolha.

Era mãe. Gestadora de vida, simplesmente mãe.

O outono chegava devagarinho envelhecendo a existência daquela outra mulher, bem estabelecida, realizada profissionalmente e razoavelmente capaz de auto-examinar-se. Seu coração vibrava ao relembrar o dia, trinta anos atrás, em que adotara aquela criança raquítica e pálida que se transformaria no sol de todas as suas manhãs desde então. Amada, muitíssimo amada. Havia lhe emprestado sua alma no lugar do seu corpo biológico.

Era mãe. Serena, simplesmente mãe.

À jornalista premiada fora solicitado um artigo sobre o papel sacralizado e mitificado das mães,
afinal muito tempo se passou da ditadura mãe/criança/Igreja/cozinha. Ou não?

O mito da mãe santa existe para alguns que têm (na psique dos católicos latinos, principalmente) o modelo de mulher-mãe-santa na Virgem Maria. Portanto, é a transformação desse mito que perdura por gerações que dará saúde a um relacionamento baseado na visão da mulher-mãe e não na santa-mãe.

Afirmar que o filho é o fim supremo da mulher tem exatamente o mesmo valor de uma propaganda publicitária, é mito. A mulher é o ser humano que consegue além de tudo, ser mãe, mesmo desamparada pela legislação que não a protege o suficiente, às vezes sozinha para criar o filho, sem ajuda de creches, escolas maternais e postos de saúde. Em grande escala, estaciona reduzida ao ideal doméstico e passivo dentro de algumas sociedades obtusas. Em outras, assume livremente a condição materna e a deseja sinceramente, mas sem limitar seus horizontes como indivíduo social.

Aos encargos da maternidade se acrescentam as fadigas e se a mulher-mãe tem necessidade de dar o seu amor também tem necessidade de ser amada. Ela ouve lamentos, consola, fica ao lado do filho iluminado, do dependente, do perdido, do bandido, não importa, aleitando-o indefinidamente com seu materno amor. Os filhos deveriam representar a obrigação de formar seres felizes.

Espera-se ainda que a mãe contemporânea comece a vislumbrar seu “novo” papel não mais tão modesto na espécie humana porque, para impor uma nova ordem, é preciso deixar brotar uma resistência teimosa, uma revolta do orgulho de ser mulher e de ser simplesmente mãe.