Um peregrino atrapalhado

Autor: Jairo Ferreira Machado

A garça mergulhava o bico para o seu primeiro desjejum quando ele caminhava à beira-mar, nas imediações da Casa do Governador, Floripa, SC, momento em que caiu de cima de um caminhão que passava a cem, uma pá – isto mesmo, pá, utensílio de trabalho de servente de pedreiro.

Na embalada velocidade que ia o motorista, coitado, nem se deu conta da perda da ferramenta, mas ao peregrino foi difícil vê-la jogada lá no asfalto, à toa, ainda podendo causar acidentes. Assim, arriou na calçada a mochila carregada de livros – três volumes da Barsa – e apanhou o objeto cujo peso somado aos dos livros passava dos dez quilos.

Soube disso depois, de quase se ver escadeirado, uma semana antes de ir pro Caminho de Santiago de Compostela. Não é necessário dizer que estava ali treinando as pernas, naquele trecho de beira-mar, com o dia já amanhecendo. E lá se foi – de pá e mochila nas costas – rezando que nenhum conhecido lhe visse e pensasse que fora enterrar, às escondidas, algum cliente seu falecido naquela madrugada.

Recuperado às pressas, com Arnica e sessões de Acupuntura, alguns dias depois tomou o rumo do aeroporto de Navegantes, onde iria pegar o vôo do dia 11 de Setembro, diga-se, data nem um pouco recomendada para estar no ar, a rumo da Europa. Já no Aeroporto, a moça do check-in franziu os cenhos, dizendo que ele não havia reservado a passagem; esfriou-lhe a espinha de cabo a rabo.

A mochila e o cajado, embalados juntos, permaneceram lá esperando as horas passarem, ele de terço à mão orando que vagasse uma poltrona no avião.

Um interminável castigo para quem estava ali desde 05h30min da manhã, mal-dormido, pensando naquele inusitado momento. Foi quando percebeu que o Apóstolo Tiago estava a seu favor, notando o sorriso estampado no rosto da jovem que lhe trazia o check-in; feito que retribuiu com um largo sorriso de alívio.

Autografou pra ela um livro seu que levava com a intenção de esquecê-lo no avião – de propósito – com a frase: leia e passe à frente, um tanto ambicioso de que alguém o encontraria e ainda gostasse do assunto – educação para a saúde – a tal ponto de recomendá-lo ao outro. Mas o deixou por ali mesmo, no balcão da TAM.

E seguiu feliz da vida depois que aquele anjo do céu lhe pregou as asas para o vôo nos Pirineus, passando pelo alto do Perdon, do Sebreiro, e sobrevoar as planícies da Galícia.

Era o segundo dia da odisséia. Chegando a Guarulhos, SP, mandaram que todos os passageiros desembarcassem da aeronave, – inclusive àqueles que iriam seguir viagem, para o Rio de Janeiro – ordem cumprida, lá foi ele e mais alguns trouxas.

No corredor de saída da aeronave alguém comentou que não devia ter desembarcado, e já preocupado, tentou voltar, mas já estava sendo empurrado, à revelia, para o saguão do aeroporto de Guarulhos, onde, tomado de angústia, tratou de romper as fitas de separação das filas, avançando a peito aberto, pouco se importando se lhe chamavam de furão, caipira e outros impropérios mais; vale lembrar que ele portava, na ocasião, o seu prezado chapéu de vaqueiro, adornado de penas.

Indignado, chegou ao balcão onde outro passageiro já esmurrava, gritava, também havia obedecido às ordens do comandante, e queria voltar pro avião a todo custo. Ele também deu por lá os seus murros, assim foram reconduzidos às pressas à pista de vôo e embarcados noutra aeronave juntos com outros mais que foram ludibriados; descoberto momentos depois que essa aeronave tinha como destino o Aeroporto Santos Dumont, em vez do Galeão.

Tudo bem que era a mesma cidade, Rio de Janeiro, e que ele fosse ao Santos Dumont fazer uma visitinha ao nobre aviador, mas tal feito podia ficar para outro momento, não era ocasião de civilidade, ele tinha conexão marcada algumas horas depois para Lisboa e de lá para outras bandas…

A angústia já tomando o seu peito, sabedor que era dos problemas de trânsito do Rio de Janeiro, ali desembarcaram, alguns passageiros bem-aventurados do destino tomado – ficariam mais próximos de suas casas – enquanto ele, mesmo ajudado pelo Santo, teria que se virar e chegar a tempo ao Aeroporto do Galeão sabe-se lá de que maneira e quando?

Recolhidas todas as malas, lá estava ele sem a sua mochila: a dita não chegara, no mesmo vôo. Logo a moça veio com a prancheta para anotações – Não se preocupe senhor. Qual o endereço? Já mandamos entregar logo… Olhou pra ela e pensou – San Jean Pierd de Port – Pirineus – França – Amanhã à tarde, sem falta, viu sua desavergonhada!

Nada disse isso, só pensou. Então, argumentou desatinado – Eu não tenho destino, vocês fizeram uma confusão dos diabos na minha vida. Eu quero a minha mochila e o meu cajado, e já!

Muito educada, a moça ligou pra alguém e tratou de consolá-lo – A mochila do Senhor está vindo na próxima aeronave, daqui a meia-hora. Não chegou no horário previsto; chegou na terceira aeronave, uma légua de estresse depois.

O tempo passando. E ele ainda ali, imaginando se Santos Dumont, o pai da aviação, concordaria com tantos desleixos e desmandos nos aeroportos desse mundo.

Pegou a mochila e de posse do cajado, o chapéu de vaqueiro enfiado na cabeça, rumou o cacete no nariz da atendente do balcão da TAM que logo chamou o supervisor – Não se preocupe senhor, vamos colocá-lo no táxi, já. – disse-lhe, com ares de assustado o tal; decerto já sabia de tal vaqueiro zangado, rondando por ali. E foi-se.

O taxista a cem por hora, pela Linha Vermelha, o seu bordão roçando o cangote dele. – Corra infeliz, se ainda não morreu de bala perdida, vai morrer de bordoada, se eu perder a conexão pra Lisboa.

Assim, chegou a tempo. Já na sala de espera, relaxado, após degustar o que hoje considera o seu primeiro Menu do peregrino, caro pra cacete, ouvia uma balzaquiana falando pra amiga – Eu estou indo a uma turnê de dez dias na Europa, mas estou levando os meus nove pares de sapatos; só os que mais gosto… Não viajo sem eles de jeito nenhum!

Olhou pra trás, desolado!

Depois deu uma olhadela na sua bota e ficou imaginando se a coitada aguentaria trinta dias de lida, de chuva e o rasgo das pedras do Caminho? O pensamento correu também o interior da mochila: uma calça-bermuda, uma bermuda alaranjada, três camisas, uma sandália franciscana, três cuecas, dois pares de meia, uma toalha tipo fralda de neném, uma necesser contendo pasta de dente, sabonete, escova, fio dental…

No mais, era coisa miúda: agulha, linha para alinhavar as bolhas dos pés, pegador de roupa, canivete…

O saco de dormir ali, como bagagem de mão: caso a mochila extraviasse, de novo, tinha-o como salvação para dormir sob marquise qualquer ou em porta de igreja.

Volta e meia ele pensava naquela balzaquiana quando a aeronave transitava o Oceano Atlântico. Mas esqueceu o assunto depois de degustar dois copos de vinho DOM e pegar no sono, ouvindo uma suave música que os seus ouvidos captavam do fone. Deixa estar: cada um leva a sua vida!

Acordou e já foi trocando umas idéias com um gajo que viajava ao lado, um jovem de nome Lucas, pensou, isso já é coisa do Apóstolo Tiago, mandado um seu contemporâneo pra cuidá-lo. E assim foi guiado pelo Aeroporto de Lisboa, até o local de embarque pra Madri. – Senhor, não deixe ninguém lhe enganar – disse-lhe o jovem, ao despedir-se, desconfiado do seu jeitão caipira.

Rezou por ele; meia-dúzia de terços! Mais tarde já estava jogando conversa fora com um casal que pegaria o mesmo avião para Madri. Ele, o senhor, já bem cambaio das pernas, respirando com dificuldade; ela, ainda bem sestrosa, era quem levava a valise de mão e outros apetrechos.

Lá pelas tantas a dona retirou da sacola alguns comprimidos e ofereceu ao marido, por certo, era algum bronco-dilatador qualquer que o aliviaria da falta de ar, ele embirrento com o fato de já em tenra idade, sessenta e quatro anos, depender das drogas.

Disse a idade sem que o peregrino o perguntasse, quando esse fez questão de esconder a sua – sessenta e três – modo não o constranger mais ainda, já que na conversa o outro ficou sabendo que estava indo fazer o Caminho de Santiago de Compostela.

Do fundo daquele olhar marejado de lágrimas pode entender a essência de sua pergunta: Óh Deus! O que eu fiz de errado com a minha própria vida? – O cigarro moço, o cigarro – respondeu do silêncio do seu pensamento. A mulher foi saindo de perto em socorro de uma vitrine qualquer enquanto ficaram ali, os dois, falando coisas e outras, até a hora do embarque.

O ruído do motor da aeronave não durou muito. Na área de desembarque da bagagem – já em Madri – tentou pegar um carrinho, visto não estar disposto a andar pelo Aeroporto com aquela coisa parecida a um esfregão de banheiro de albergue – a tal mochila, presa ao cajado – mais parecendo um trapo na ponta de um cabo de vassoura. Mas o danado do carrinho não saia do lugar. Dava pinotes pra todo lado, rodopiava, ele tentando empurrá-lo e nada.

Já estava pensando em pegar o cajado e rumar o cacete no carrinho; fossem outros tempos, ou algum conhecido gaúcho, montava-o e cortava-o na espora. Mas eis que lhe acudiu uma senhora, jeitosa, que pôs o dedo na moleira do tal e esse ficou obediente. A jovem que a acompanhava, estava lá, sentada no chão, rindo de se matar.

Deu de ombros…

Amansado o infeliz do carrinho, ele arriou nele as suas tralhas e foi; lembrar que ainda ele portava o seu chapéu de vaqueiro – a caráter. Só viu novamente o casal, de longe, já saindo do aeroporto: a mulher empurrando o carrinho com três enormes malas dentro e ele, o enfisematoso, se escorando nela.

Quando começava mais uma odisséia na sua vida: achar o terminal de embarque para Pamplona.

A espanhola do balcão, com seu castelhano lacônico, mal-humorada, tentando convencê-lo de que ele precisava sair do Aeroporto, entrar num ônibus verde, para chegar ao Terminal Quatro, quando ele, irascível, discordava: sair daquele Aeroporto parecia à coisa menos sensata – estaria definitivamente perdido. Nunca mais acharia o caminho de casa.

E tampouco o Caminho de Santiago de Compostela.

Mas foi. Já no ônibus, fechou os olhos, rezando, e se entregou aos braços do Apóstolo. Enquanto isso, outros passageiros falavam mal da lonjura, da falta de praticidade do Aeroporto. Logo depois o ônibus encostou.

A fila do check-in parecia não ter fim, ele sem a passagem, tinha no bolso apenas o número do vôo e o destino, que o seu companheiro de caminhada à Compostela – já em trânsito pela Europa – havia lhe adiantado antes de viajar.

Deveria tê-lo encontrado, no local de desembarque, mas nessa hora, pareceu-lhe, o Apóstolo estava tirando uma soneca e o colega, à deriva.

Ainda assim, foi pra fila. Seja o que Santiago quiser?! O Santo quis. O seu companheiro já havia passado por ali, disse-o a atendente, logicamente, estaria na área de embarque pra Pamplona, então, lhe restava transpor a enjoada Inspeção Federal daquele país, onde o seu cajado, enfeitado ao esmero, dentro do mais puro sentimento civil-patriótico, não teve a mesma sorte: foi barrado.

Embraveceu-se. Apelou aos sentimentos do Policial. – Santiago é o Padroeiro desse País: vim reverenciá-lo numa caminhada de oitocentos e cinqüenta quilômetros e trouxe o meu cajado… O Polícia ali, insensível. Quando muito, deixou que ele passasse; não antes de quase o levar preso, quando, irascível, o peregrino arrematou – Então, o Santo vai amaldiçoá-lo, infeliz!

Chegando ao ponto de embarque para Pamplona, saiu à busca do parceiro, já resolvido fazer o Caminho sozinho, caso não o encontrasse. De repente o avistou. Mas quando achava que o tinha encontrado, o danado desapareceu; chegou a pensar que estava vendo fantasmas.

Depois de tantos senões; até era possível. Insistiu na busca. E num repente o encontrou lá, no asseio do aeroporto, em frente ao espelho, enxugando o rosto com uma toalha de papel; com a cara mais lavada do mundo: era o seu companheiro de viagem: Guido Becker.

E só então se sentiu em San Jean Pied de Port e a Caminho de Santiago de Santiago de Compostela. Mas isto é outra história… Leiam Chuva de Estrelas, nesse mesmo site.