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Julia, mulhermiúda, de cabelos longos e embaraçados, calçava um
par de tênis que parecia grande demais para seus pés. Não usava
as habituais vestimentas apropriadas para as trilhas e sim um
conjunto de saia e blusa de algodão. Sua mochila era na verdade
um saco de pano fechado por cordas nas que formavam uma
improvisada sacola. Dentro devia ter pouca coisa, pois aparentava
estar meio vazia. Em vez do bastão de apoio característico dos
peregrinos, Julia levava um prosaico guarda-chuva que tanto
servia para apoiar seus passos quanto para protegê-la do sol. Este
foi nosso primeiro contato. Apenas nos cumprimentamos com a
tradicional saudação dos peregrinos –
¡Buen Camino!
- e Julia
seguiu sua jornada.
Pensei comigo: 'Esta não é uma peregrina, provavelmente
mora por aqui e vai visitar alguém usando um trecho do caminho
como atalho'. Quase duas horas depois, quando já pensava não
mais encontrá-la, lá estava ela, apoiada no seu guarda-chuva.
No dia seguinte não resisti. Quando a vi novamente
repousando, desta vez sentada num tronco caído à beira do
caminho, ofereci-lhe umamaçã e começamos a conversar.
Julia contou que morava emVizcaya, Espanha, e esta era a
oitava vez que fazia o Caminho de Santiago. Desta vez saíra de
Lisboa, bem ao sul de Braga, por onde nós começamos o Caminho.
Simplesmente estava sozinha em casa quando lhe deu vontade de,
mais uma vez, cair na estrada. Como seus tênis estivessem muito
desgastados, Julia passou na casa da neta e pediu-lhe um par
emprestado. Arrumou algumas peças de roupa na sacola,
abasteceu-se de água, alguns sanduíches, uns trocados, seu velho
guarda chuva e, naquele mesmo dia, tomou um ônibus para
Lisboa. No dia anterior, chegara à conclusão que exagerara na
bagagem e aproveitara a passagem por uma agência dos Correios
e despachara o excesso para sua casa na Espanha.
O que leva uma pessoa como Julia, 76 anos, a percorrer
uma distância de quase 400 km a pé é difícil de responder. Mas, se
olharmos a nossa volta, veremos que Julia não é uma exceção e sim
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Olhar Peregrino