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A partir dessa ecaz e brutal lição de meu pequeno grande
mestre, passei a buscar programas de autoconhecimento e de
autodesenvolvimento. Foram muitos. Lentamente, eu passei a
aceitar novamente a ideia da existência de um Ser Criador e de
vida após a vida.
Anos depois, já cinquentão, passei a apreciar a ideia de
trilhar o Caminho de Santiago de Compostela, em busca de
respostas às minhas perguntas. Atraído por ele, passei a entendê-
lo como uma metáfora de meu próprio caminho interior, que eu
buscava desvendar e desenvolver.
E, então, iniciei minha peregrinação.
Já no Caminho, livre de outros compromissos, andando a
pé por lugares ermos e por pequenas vilas, alongava o tempo
percebido e diminuía sensivelmente meu ritmo interior, percebi
que ia resgatando meu passado. Não o passado recente, que o
Caminho apagava a cada passo que eu avançava. Mas o passado
que dizia respeito à minha educação, ao aprendizado do modelo
socialmente aceito como normal. Lembranças muito antigas, mas
modelos ainda muito atuais de construção da personalidade do
'cidadão útil à família, à sociedade, à religião e ao país'.
Se no início da caminhada eu carregava comigo as pessoas,
convenções e problemas com os quais estava envolvido e minha
mente ocupava-se deles, torcidos e destorcidos por inconscientes
mecanismos, aos poucos, essas cargas desapegavam-se e
perdiam-se nas estradas e trilhas, tangidas para longe, como
folhas outonais e foi emergindo emmimum ser autêntico, livre da
rigidez dos papéis sociais. O ator saía de cena, dando lugar ao
agente de seu própr io des t ino . Eu tornava-me ma i s
contemplativo, reexivo e aberto ao novo, encantando-me com as
surpresas do dia-a-dia. Tendo já então a mente esvaziada de
entulhos e encargos, recentes ou acumulados desde longa data,
permitia-me mergulhar em estados mais profundos de
consciência. E entendi que, paradoxalmente, quando diminuímos
os excessos de que somos feitos, tornamo-nosmaiores.
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Olhar Peregrino