Página 89 - Olhar Peregrino paginadaOK4

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De volta ao Brasil, acordando de minha primeira noite,
saudoso e maravilhado, deixei-me car na cama, ouvindo o
pipilar telegráco dos tico-ticos, as boas vindas do bem-te-vi, o
estridente grito de alegria do joão-de-barro, a veemente
assertividade dos quero-queros em pleno voo, o melodioso arpejo
do sabiá e, ao longe, nomangue, o riso-lamento da jacutinga.
Sentia, no entanto, a estranha sensação de voltar ao que me
é familiar, tendo que me reabilitar aos espaços físicos, antes tão
conhecidos e recriar os espaços psicológicos, antes tão denidos...
Ao levantar, assustei-me ao ver um homem barbudo e
magro a olhar-me do outro lado do espelho. Sem pudor, deslizei o
olhar por seu corpo nu, procurando reconhecê-lo por algum
detalhe, alguma cicatriz, alguma das costelas aparentes. Encarei-o
face a face. Admirei sua barba encanecida e os cabelos curtos e
ralos. Apiedei-me de seus lábios rachados e das rugas recentes.
Quando encontrei seus olhos, vi que me observava com igual
interesse e intensidade. Mas tinha umolhar mais doce que omeu e
sorriu paramim. Reconheceu-me antes que eu o reconhecessemas
não teve pressa em dizer-me, pois eu ainda estava receoso da
presença daquele estranho que me parecia ter visto antes, algum
dia, em algum lugar, não no passado, mas no futuro. E ele me
olhava insistente como a indagar: 'Então ainda não sabes quem eu
sou?'. E desfazendo minha inércia, acrescentou: 'Vem!, vamos
trocar de lugar'. E o estranho saiu do espelho e nele me fez entrar.
Olhando-o através do cristal, enm o reconheci: era eu, não o eu
conhecido, mas o eu futuro, que projetara ser...
Então sorrimos um para o outro e nos dissemos:
“¡Buen
Camino!”
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Inácio Stoffel