Odisséia de Inauguração

Autor: Jairo Ferreira Machado

No decorrer da semana a TV anunciava a todo instante a inauguração do supermercado, criando expectativas incontroláveis nas já neuróticas donas de casa e, por tabela, a todos os familiares; a cidade inteira só falava do assunto e das eventuais promoções do dia.

O povo acostumado aos armazéns e ao mercadinho de esquina animava-se com a novidade – a grandeza da obra à beira-mar.

E assim, instigados por supostas vantagens e levados pelo consumismo doentio, a clientela fez-se presente no dia e hora marcada; os mais afoitos amanheceram na fila. A cidade inteira estava lá; força de expressão, mas bem que parecia.

Somados a estes, os veranistas que lotavam os hotéis no início de temporada: argentinos, paulistas, gaúchos, paranaenses, todos loucos por retornarem de Floripa com encomendas e presentes mais em conta.

O clima de euforia comungava com o final de campeonato entre Avaí e Figueirense.

Como de praxe, havia também certa desconfiança política, coisa que não se resolve com a inauguração de um Supermercado; o povo desconfia, desconfia, sabe quem são os ladrões, tenta mudar o palpite na última hora, mas acaba votando errado. Temos muito que aprender ainda!

Certo deputado, um tanto descontente com a queda da intenção de votos do povo, ridicularizara verbalmente os pretensos eleitores, causando indignação a muita gente.

Na enorme fila, já quase contornando o supermercado, os discursos variavam: futebol, política, novela, namoro e receitas culinárias. Próximo de onde eu me encontrava, a contragosto (fora para ali arrastado pela esposa), duas velhinhas exaltadas discutiam sobre o sujeito, o tal deputado:

– Se eu fosse eleitora dele, eu cuspiria na cara do safado.

E sacudia a sombrinha fechada, em sinal de indignação; considerando a revolta, era recomendável mesmo que o político não aparecesse por ali! A outra concordando, enfaticamente.

– São todos iguais!… Uns salafrários!… Eu mesma o esganaria… – falava mostrando os punhos fechados. O clima piorou quando o incauto segurança do supermercado recomendou ordem na fila, tentando organizar a bagunça, instante em que alguém interferiu:

– Que fila, moço? Cadê o raio da fila? Isto aqui é uma confusão dos infernos. O segurança quis ponderar, mas desistiu quando alguém lá de trás, gritou acintosamente.

– Abram logo essa joça, aí! Passou da hora!… O sol está muito quente…

O segurança retirou-se estrategicamente, refugiando-se para o interior do supermercado, onde se viam – através da porta de vidro – pessoas andando apressadas, numa aparente ansiedade.

Um torcedor do AVAI amargando ainda a última derrota para o rival FIGUEIRA apostava numa goleada de seu time, naquela noite. Calou-se quando um velhinho, chapéu de Panamá, camisa alvinegra, apoiando-se numa bengala, assegurou:

– Vão ganhar, sim, mas é aquilo que a Luzia ganhou atrás da horta!

A avacalhação, vinda do ancião, provocou certa descontração no ambiente, já um tanto tenso.

As pessoas se acotovelavam na fila, empurrando os carrinhos umas nas outras; algumas, de propósito; outras, por acidente, na tentativa de encontrar espaço! Isto, de certa forma, incomodava os mais ranzinzas.

Um cidadão, portando um uniforme cáqui e medalhas no peito, olhava de soslaio, tentando impor ordem e respeito ao ambiente; atitude, deveras, improdutiva! Sentiu logo que sua patente não teria efeito disciplinar naquela desordem e pelo seu bem-estar físico e espiritual, descontraiu-se.

– Ninguém segura este povo mesmo!

Alguém pegou um carrinho, achando que não tivesse dono, mas foi logo excomungado por uma senhora peituda que discordava, freneticamente, da receita de uma torta, com a companheira da fila.

– O carrinho é meu, cai fora, seu veado! Disse-lhe a peituda, arrancando-lhe o carrinho das mãos! Espantado, o incauto retirou-se desnorteado com o estampido do adjetivo nos ouvidos.

Isso tudo, no exato momento em que desabou um paralelepípedo do muro recém-acabado, tendo o objeto passado rente à cabeça de uma criança, próximo de onde o povo se debatia feito boiada tentando passar uma porteira.

Sabia-se que o muro tinha sido construído às pressas, para a inauguração, no que a mãe reagiu revoltada:

– Porcos! Vou processá-los por isso!

E saiu colérica, esbravejando, levando o filho nos braços, deixando vago um lugar na fila. O tumulto logo foi superado com a abertura de mais uma das portas do supermercado, antes que o povo a levasse no peito.

Tudo que acontecera até então, era fichinha, coisa insignificante mesmo, diante do que estava por vir: os “humanos” ali, numa briga danada pelas promoções do supermercado.

Uma grávida, de oito meses, foi espremida contra a parede por um bando de gente, quase dando à luz ali mesmo, naquele fatídico dia; salvou-a um corpulento mulato fazendo arrastão em meio à gentalha, para que ela deixasse o local o quanto antes.

Em questão de minutos as áreas de acesso às mercadorias já estavam lotadas. Uma menina que empurrava o seu carrinho e fora levada à revelia pela multidão, gritava lá de longe:

– Mãe! O que faço? Não posso ir, nem voltar.

Do outro lado, a mãe respondia, tentando apaziguar-lhe o ânimo.

– Deixe essa porcaria por aí, filha! Pule sobre os demais carrinhos e venha para cá. Vamos dar o fora daqui. Urgente!

Os corredores das promoções, esses então, ninguém arredava pé! Na prateleira dos absorventes íntimos, a coisa ia de mal a pior. Uma senhora, tipo xerifona, comandava a tropa de comadres, – todas elas já excessivamente abastecidas dos produtos íntimos, ainda assim querendo mais – esperando pelo reabastecimento das prateleiras, aonde nenhum repositor conseguia chegar: era assaltado antes.

Um desavisado marido que fora em busca da mercadoria para a esposa, vendo todo aquele exagero, não se conteve:

– Vai usar tudo isso, madame? Já sei: não é florzinha coisa nenhuma, é Vitória–régia!…

Disse e tratou de dar o fora, trombando em quem estivesse pela frente. A xerifona, já puta nas calças, rodopiou a saia, gritando alto.

– Anh! Quer modess… veadão? Toma! E atirava modess em direção ao sujeito, mandando as outras fazerem o mesmo.

Apesar do sufoco, alguns se aproveitavam da situação. Na falta de coisa melhor para fazer, determinado cidadão empurrava o carrinho no traseiro de uma balzaquiana que, pela cara, segurava faceira na ré, feliz, nem se incomodando com o inconveniente (naquele caso, conveniente!).

Que se danasse a malícia alheia. No tumulto, um guri começou a chorar e a gritar, pedindo para fazer xixi. O jeito foi passá-lo de mão em mão, por cima dos carrinhos e do povaréu, até que alguém próximo ao banheiro o socorresse; a contragosto dele, naturalmente: queria porque queria a mãe!

A turma olhou, mediu, pesou na balança, mas a carga não pareceu das mais leves; que o pirralho se virasse sozinho…

Enquanto isso, o tempo ia passando sem que ninguém tivesse adquirido nada do que fora ali buscar. A não ser um baita incômodo!

Um senhor de meia-idade falava sem cessar, angustiado:

– Loucura!… Loucura!… Isto mais parece um curral de bois, uma boiada… Descuido-me e até levo chifradas aqui…

Quem olhasse de fora para dentro do Supermercado diria que havia ali mesmo uma boiada, presa num cubículo, um escoiceando o outro. Arredasse o pé do lugar e era pisado pelo vizinho.

Naquele ínterim, alguém reivindicava os direitos do cidadão.
– Exijo a presença do gerente, aqui!
– Que gerente, senhora? – argüiu o mais realista.

Estava certo. Por mais ajuizado que fosse o gerente daquela joça, o dito cujo já tinha pedido demissão, e se pouco, ia numa desabalada carreira no sentido das praias, para refrescar a cabeça – bem longe daquele inferno!

A situação era insuportável. E inexplicável. Por que, repentinamente, toda aquela gentalha – inclusive eu – estava ali, para aquela inauguração? Enquanto me perguntava, odiava-me…

Da esposa, eu nem sabia o paradeiro. Apesar dos avisos de que ela não saísse de perto de mim. Até onde pude acompanhá-la – com os olhos, evidentemente – estava sendo empurrada para as bandas do material de limpeza; tanto melhor, era para lá mesmo que ela pretendia ir.

E fora… Enquanto isso, eu era torturado nas imediações dos caixas, já de saída, acompanhando os descontentes, tendo ainda o carrinho vazio. Levava comigo a certeza de que jamais voltaria ali!

De repente eu vejo a velhinha – aquela da sombrinha – abrindo caminho com a arma que desejava quebrar na cabeça do tal político; ia dando sombrinhada nas costas dos cidadãos, fazendo seu corredor particular…

– Diabos! Saiam do caminho!… Blasfemava malcriadamente; porém, não sem razão! Já lhe tinham rasgado o vestido de seda – tirado do guarda-roupa para aquela ocasião – e nem sequer havia conseguido arrecadar uma promoção.

Percebi-lhe a intenção e fui atrás, ela abrindo caminho na porrada e eu me aproveitando da sua malvadeza, até me ver livre daquele inferno…
Duas horas depois quando os primeiros carrinhos abastecidos chegavam aos caixas, enxerguei a minha mulher. Estava exausta, me olhando atravessado, como se eu fosse o culpado de tudo aquilo; eu, mais do que inocente…

Mas, nem por isso, menos burro!

No seu carrinho, pouquíssimas coisas: um surrado fardo de papel higiênico, dois guardanapos rasgados, que tomara das mãos de alguém, duas embalagens de água sanitária sem rótulos e meia dúzia de vassouras; até hoje, não sei por que ela gosta tanto de vassouras!

Eu olhando para ela, rindo de nós mesmos. Maldita a hora em que eu acordara aquele dia. Bem que merecíamos tudo aquilo; eu, mais ainda – por ter lhe dado ouvidos…

Mas, já era tarde. Tenho comigo que Deus nunca foi a uma inauguração de Supermercado; do contrário, providenciaria para ali um furacão dos piores, de véspera…