Carnaval em Urupema


01 a 04 de março de 2014

A viagem

Madrugada de sábado de Carnaval, centro de Florianópolis. Um grupo de mochileiros à procura de ônibus que não estão onde deviam estar. Onde? Mais pra frente, ao lado da Alfândega. E lá vão, a sós, às duplas, em grupo. Lá está.

Bagagem embarcada, contagem feita, inicia a viagem. O ônibus maior na frente, o menor seguindo, como bom potrinho.

Primeira parada: café da manhã, sem outra pressa senão seguir viagem. E sobe que sobe, corcoveando à esquerda e à direita rumo ao topo da serra. À excitação inicial, segue-se a tranquilidade da sonolência.

Segunda parada. Pra quê? Pra mais uma ‘boquinha’ e pra desaguar. Ah!, sim, entendi. E continuamos. Quantos? 68 seu moço, tudo gente que tem prazer em caminhar.

Finalmente chegamos à entrada da Fazenda do Barreiro. Estrada de barro é claro! Aí o buzão, quase que rejeita o acesso: trânsito parado, corcoveia pra cá, corcoveia pra lá, joga os cascos pra trás e volta a atacar. Êta potro xucro, barbaridade! Enfim, graças ao pulso firme do ginete, o bagual é domado e se mete na estrada que escorrega entre coxilhas, descendo em direção ao vale. Mas, por duas vezes o danado empina nos cascos enfrentando rivais vindo em sentido contrário. Briga feia, guri! Quase que se mordem no pescoço.

Ao invés de porteira, a fazenda tem um rio pra intimidar os intrusos. Só passa se tiver fé: tem de caminhar sobre as águas, feito São Pedro. Ai, minha Santa Catarina! O homem da chaves do Céu é padroeiro do Rio Grande do Sul. E agora, como ficamos? Pode vir, que aqui na serra todo mundo é gaúcho e Santa Catarina e São Pedro são assim, ó! E esfrega os indicadores um no outro, enquanto nós cruzamos os dedos. E o buzão garboso, em passo de desfile, seguro pelas mãos do casal de santos, atravessou o rio sob intensos aplausos dos passageiros.

Primeiro dia

Uma vez instalados, seguiu-se o almoço. Carreteiro do bom, tchê! Ao invés de preguiça, deu força pra caminhada. Mas, antes, a Marize nos lubrificou as juntas e alongou os quartos com sua ciência do movimento.

Prontos e excitados, todos puseram-se a seguir o guia. São só dez quilômetros, vai ser fácil. E anda. E sobe. E anda. Nova subida, reduzir a marcha. E anda no campo. E anda na estrada. O Sol querendo fazer churrasco da gente. Um refresco: o carro de apoio nos ofertou frutas, bolos de banana e bebida. Volta a andar. Começando embolado. Aí, dispersando. Em fila, subindo. De um em um, subindo. Gente ficando pelo caminho. A respiração dizendo: Pare! As pernas dizendo: Pare! Se parar eu fico; quero saber onde vai terminar a caminhada. É logo ali, no topo da coxilha. Cheguei! Não, é aquela coxilha ali. Sempre ali tinha uma nova coxilha, sempre mais longe e sempre mais alta. Pulmão em chamas, pés em brasa, os heróis da resistência chegaram, finalmente, a tempo de ouvir o guia dizer: agora vamos descer. Ai, meu Cristo! Mas a visão lá de cima compensou. Por todo lado vales e montanhas, campos e pinheirais, emoldurados pelo azul do céu. Ah, sim!, fotos, muitas fotos. Da paisagem, de si, dos outros, dos pinheiros…, fotos, fotos, fotos que não acabam mais.

E aí a volta. Pra descer todo santo ajuda. É, e o santo ajudou? Nem um tiquinho! A gente foi meio que parando pra não cair, tropeçando, reequilibrando, desabalando, quase rolando e parando de novo pra abrir o fole e botar ar pra dentro, até acalmar a respiração. Se sentar não levanto mais. Fico em pé mesmo, se puder dou mais uns passos. E desce. E anda. E desce. E anda. E… Ops!, agora sobe. E anda (piloto automático ligado, mente desligada). Assim, meio morto meio vivo, a gente voltou à fazenda. É que a gente ouviu errado: não foi dito dez quilômetros e sim dez-e-sete. Pois, sim!

A tempo de um banho, aperitivo, música gaúcha, parabéns a ‘seu’ Lelo (dono da fazenda) e jantar. Então tá bom. Boa noite! Quê?! Nada disso. Teve bloco organizado – vestindo fantasia muito florida -, teve viúva negra, pierrot,… Até o Fred Flinstone deu as caras com a Pedrita. E dança e pula e faz trenzinho ao som de samba.

Bem verdade que o carnaval não varou a madrugada. Antes do galo cantar, os foliões se recolheram. (Nota: a última frase é apenas uma expressão literária; o galo foi servido no jantar).

Segundo dia

Ai, que sono!

A turma da aurora (Ôôôôô, Aurora!) teve tempo de matear e prosear antes do desjejum. Nem por isso os foliões da véspera tiveram menos apetite, afinal café da manhã tão bem servido eu quero todo dia.

Em círculo, após ouvirmos jurar que a caminhada não iria passar de 25 Km, voltamos a fazer exercícios matinais – lindos, leves e soltos… (eu, heim!) – de alongamentos e lubrificação das juntas, ou do que sobrou delas.

A paisagem novamente foi deslumbrante, assim como – novamente – pulmões e pernas pediam descanso de tanto em tanto. Mais ainda na hora do piquenique de almoço, onde cada um sentou-se como pode, comendo um tenro bife de alcatra na chapa, pão e salada (meu bem, posso comer cebola e repolho?). A fartura era tanta, que mesmo os bem-educados, estes heróis que aguardam que os outros se sirvam primeiro, tiveram seu quinhão e ainda houve sobra (eu mesmo não estou incluído na relação dos justos, mas sou fã deles). Houve quem desertasse da caminhada e voltasse à fazenda de ônibus, enquanto outros seguiam sem pressa até o final do roteiro, com direito à repetição de cenas de fadiga do dia anterior. Desnecessário dizer que a quilometragem feita foi maior que a anunciada, mas tudo bem.

Poupo palavras sobre a caminhada pra reservar espaço ao que ocorreu à noite.

Após o jantar, fomos brindados com danças gauchescas por um grupo folclórico da região, mostrando diversos ritmos e passos, incluindo uma dança gaúcha portenha. Devemos lembrar que o tipo gaúcho desenvolveu-se nos pampas do sul do Brasil, do Uruguai e da Argentina e que sua música e dança foram influenciadas pelo folclore açoriano e espanhol. Parabéns aos dançarinos!

Mas o melhor estava por vir. Todos no aguardo do fandango, entraram no salão uma viúva trazendo consigo a filha e um forte desejo: desencalhar a prenda. Sentaram-se, aguardando, como nós, o início da música. Eis que novo personagem adentrou o recinto, com banca de conquistador. Olhava nos olhos, como que procurando a alma (gêmea?) das senhoras e donzelas. Percorreu toda a pista de dança, sempre com o porte altivo e desafiador.

E o gaiteiro fez a sanfona chorar e soltou a voz numa poética profecia, pois suas palavras tornavam-se realidade diante de nossos olhos. Fulminantemente apaixonado pela viúva-mãe, tomou-a nos braços, desprezando seus protestos e o oferecimento da donzela encalhada. E dança que dança. E aperta aqui e desaperta ali, vão bailando no exato compasso da música. O gaúcho cada vez mais ousado e a viúva mais desesperada. A filha, histérica com a inversão dos papéis e arriscando perder o potencial marido e mãe num só golpe do destino, agarra-se ora à progenitora, ora ao ladrão de corações. Este, feliz por sentir a vitória próxima. A mãe, feliz por sentir a derrota. A filha, infeliz por sentir a dupla perda. É uma apoteose dramática e hipnótica que…

… acaba com o último acorde da sanfona e o silêncio do sanfoneiro. Parabéns Ana Zen (filha), Mayalú (mãe) e Laudelena (conquistador). Vocês foram brilhantes!

A música recomeçou, atraindo os casais à pista de dança. E o fandango alegrou a noite estrelada e fria da serra.

Terceiro dia

Ai, que sono!

Ai, que dor!

Até o início da caminhada, tudo pareceu igual ao dia anterior. Felizmente também pela presença do sol e do bom ânimo dos associados. O objetivo era alcançar a pequena Bossoroca, onde iríamos almoçar e, à tarde alcançar o centro de Urupema. Tá combinado, né? Então por que – logo, logo – o grupo da vanguarda acelerou e deixou pra trás o restante? Sem guia e sem rumo, buscando caminho pelo faro, pelo instinto, na garra. Como batedores, procurando indícios aqui e ali até – do alto da coxilha – ver o grupo aguardando (não faça mais isso, senão eu conto pro papai).

OK. Como ficamos amigos de novo, vamos almoçar juntos em Bossoroca, depois a gente vê. Vê o quê?, Um número grande de nós voltou dali mesmo, lotando o ônibus. Mas os heróis da resistência chegaram a Urupema, recepcionados por Vereador e Secretária de Cultura e Turismo, com direito a chimarrão, bolos de banana e marmelo e cafezinho. Urupema é uma cidade pequena, mas simpática, limpa, com bela e florida praça e encantadora igreja matriz. Digna de cartão postal. Obrigado pela recepção!

Mas o bacana aconteceu durante a caminhada, com o intercâmbio entre as pessoas. Histórias e experiências sobre caminhos anteriores e sobre o Caminho de Santiago (feito ou por fazer), confidências, piadas, fofocas, política, religião, fotos de pessoas e de paisagens e da cidade… Tudo era motivo para repartir, confabular, estreitar laços.

Voltando à fazenda – de ônibus, e já tarde -, estávamos mais pro descanso que pro programado bingo. Muitos resistiram e participaram levando seus merecidos prêmios. Quanto a mim: ‘Boa noite!’.

Quarto dia

Ai, que sono!

Ai, que dor!

Ai, que chuva!

Choveu a noite toda. A caminhada ia ser curta. Deu pra dormir mais. Que bom. O pessoal da madrugada sentou-se em roda, fez circular as cuias de chimarrão e ficou verde de tanto mate.

Hora do café. Era tanta guloseima – frutas, sucos, frios, bolos, cucas, pães, omelete, manteiga, requeijão, mel, linguiça frita, café, leite, chá e tanta outra coisa que não escrevo porque a memória me falha – que foi difícil provar de tudo nessa estação de engorda (a fazenda engordava mulas, trazidas por tropeiros do Rio Grande do Sul, rumo a São Paulo e Minas Gerais, nos séculos XVIII e XIX).

Início da caminhada. Íamos visitar uma cascata, não muito longe. Todos de capa ou jaqueta impermeável, pusemo-nos a caminho. De passagem, visitamos uma bela capelinha construída pela família Barreiro, as paredes em pedra, o alpendre e a torrezinha do sino em madeira. Um encanto!

Mas, vamos à cascata. Descemos um pouco, subimos outro pouco e chegamos ao rio. Mas, vamos à cascata. Ali está ela, disseram. Onde? Juro, tudo o que eu via era uma quedinha, dessas que não machucam nem a água que cai. Talvez eu estivesse cegado pela chuva ou me fizessem falta os óculos ou não eu soubesse classificar corretamente um fenômeno hídrico. O que sei é que eu estava encharcado, com frio e desapontado. Na volta, a chuva e uma boa prosa lavaram meu mau humor.

Valeu? Sempre vale. Caminhar é celebrar a vida.

Banho tomado, roupa seca, fomos almoçar. Churrasco de costela e de pernil de ovelha. Quer mais? De lamber os dedos.

Abraços e palavras de despedida aos donos, gerentes e empregados da fazenda e tornamos a vivenciar o milagre da travessia sobre as águas (uma barragem dava garantia extra para que o milagre acontecesse) e pegamos estrada, numa viagem tranquila e sem incidentes.

Abraços e despedidas também na chegada. Saudades instantâneas. Vontade de iniciar outra jornada. De estar juntos, associados, em família. A família ACACSC.

Por: Inácio Stoffel


Fotos: Catarina Rüdiger

Detalhes do Evento