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Foto do escritorSérgio Rabelo

AS SOMBRAS QUE PROTEGEM NO CAMINHO DE SANTIAGO

Atualizado: 3 de jul.

As sombras que protegem no Caminho de Santiago

Sérgio Murilo Rabelo

Após a decisão de fazermos, pela segunda vez, o Caminho de Santiago de Compostela, eu e Lene, minha esposa, e duas amigas, Marihá e Bebel, nos reunimos algumas vezes para organizar a vigem.  Resolvemos ir no dia 30.08.2018 e começar a caminhada no primeiro dia de setembro, partindo de San Jean Pied de Port, na França. 

Conforme o planejado, saímos de Florianópolis no dia 30 e chegamos em Pamplona, na Espanha, no dia 31. No dia seguinte, saímos de Pamplona às sete horas, de taxi, e chegamos em San Jean Pied de Port pelas nove e trinta horas. Fomos até a Oficina do Peregrino pegar as orientações e, em seguida, demos uma volta a fim de conhecer a cidadezinha. Ao passarmos em frente de uma igreja bastante antiga, que muito me chamou a atenção, entramos. Logo na entrada, me veio a sensação que não estávamos sozinhos. Olhei ao redor e só vi minhas três companheiras. Preferi não comentar nada. 

Saímos e começamos a caminhar em direção ao Refuge Orisson, movidos por uma grande expectativa em relação a subida do Pirineus. Como tínhamos combinado, subiríamos em duas etapas, uma em cada dia. No segundo dia fomos até Roncesvalles. Caminho lindo, muito íngreme, mas de vista maravilhosa. Chegamos a Refuge Orisson, após caminharmos 7,5 km, às 14 horas.

Foto: Sérgio Murilo Rabelo

Na manhã seguinte, fomos recepcionados por um nascer de sol inconfundível, produzido pelo avermelhado do sol com o contraste das linhas de fumaças que eram deixadas pelos aviões no céu, além do verde das montanhas. Saímos às sete horas e chegamos por volta das catorze a Roncesvalles Albergue Real Colegiata, após 19,9 km, um dos pontos mais bonitos do trajeto, onde as ovelhas, vistas de longe se confundem com as pedras na pastagem. Só quando se chega perto é que se da conta que são ovelhas e não pedras.

No caminho entre Refuge Orisson e Roncesvalles, na subida, já na metade da montanha, ao lado do caminho e em cima de uma montanha de pedras, onde se encontra a imagem da La Vierge de Biakorri, senti a presença de alguém ao meu lado. Olhei ao redor, mas não havia ninguém. Continuamos a caminhar e novamente senti a misteriosa presença. Como estava à frente das meninas, minhas companheiras de Caminho, esperei Rosilene chegar e falei que iria voltar para deixar as botas ao lado da imagem da Santa, mas não comentei nada sobre a sensação da tal presença de alguém junto a mim. Essas botas foram as que usei em 2014, no Caminho de Leon a Santiago, e que naquela ocasião prometi a mim mesmo que retornaria ao Caminho e as deixaria lá. Retorno realizado, promessa cumprida. 

Voltei e assim fiz. Deixei as botas. Continuamos a caminhar e iniciando um trecho de floresta, em um corredor – eu estava junto com a Lene, Marihá e Bebel estavam mais atrás – começamos a ouvir os sinos das ovelhas ao longe; logo elas estavam passando abaixo de nós, entre arvores. De repente, ao lado das ovelhas, estava a imagem de alguém que eu conhecia, mas estava na sombra das arvores e não consegui identificar. Marihá e Bebel chegaram perto de nós, mas não comentei nada e eu não tirava os olhos das ovelhas tentando ver se conseguia reconhecer a pessoa. Mais ao longe estava o pastor com seu cachorro. Continuamos a caminhar e eu intrigado com a imagem. 

Chegamos em Roncesvalles e fomos nos registrar no Albergue Real Colegiata. Enquanto aguardávamos na fila, Rosilene pegou o celular para acessar a internet através do WI-FI do local. Eis que aparece uma rede, com o máximo de potência, com nome do meu pai: Jucimar Rabelo, falecido em outubro de 2017. Ela veio me mostrar, minha esposa, que também tinha um grande carinho por meu pai. Falei que ele estava nos acompanhando, pois em todo trajeto, de Orisson até ali, eu sentia algo muito forte.

Já de posse de nossas camas, peguei meu celular e lá estava, novamente, o WI-FI com carga máxima no nome de meu pai. Mas tinha uma diferença, pois o WI-FI da casa do meu pai é JURA, as iniciais dele, e o nome da rede que aparecia no WI-FI do Albergue era Albergue Colegiata.

Saímos e formos participar da missa do peregrino, Na hora da consagração, como de costume, fechei os olhos e me entreguei ao ritual, pois é uma das partes da missa que mais gosto. Concentrado e ouvindo o padre, tive a sensação de ter alguém batido no meu ombro. Abri os olhos e nada; olhei para a minha querida companheira de vida, Lene, e ela perguntou o que era. “Batesse no meu ombro?” Perguntei. “Não!” Respondeu-me. Nesse momento, vi entrando na igreja quatro cavaleiros medievais, vestidos com túnicas brancas e vermelhas e, com os elmos entre os braços, caminharam em direção ao padre e ajoelharam-se na sua frente. Permaneceram ali até o sacerdote acabar o ritual.  Uma imagem perfeita. Uma sensação indescritível. Balancei a cabeça e do nada as imagens sumiram. Não falei nada para ninguém, pois certamente  iriam rir de mim. 

Voltando, jantamos e fomos nos deitar. Não conseguia dormir, pois o filme não saia da cabeça. Olhei no celular para ver as horas. Já passavam das duas da manhã. Levantei e fui urinar. Segui a luz de emergência pelo corredor até chegar ao banheiro. De repente um vulto passa para o outro lado, não me importei, segui e fui fazer o que me fez levantar. Voltei para a cama olhando tudo para ver se via mais alguma coisa; nada, voltei a dormir.

Às cinco horas já estava acordado e os pensamentos do que tinha acontecido durante a noite anterior não saiam da minha mente. Às seis, as luzes do albergue foram acesas e, com elas, a movimentação dos peregrinos, pois tínhamos que deixar os quartos para os hospitaleiros limparem e prepara-los para os novos peregrinos, embora “muitos já haviam saído para caminhar”. 

Passados alguns dias de caminhada, na cidade de Azofra, liguei para um Albergue de Groñon para reservar quatro camas, pois achamos que tinha muita gente fazendo o Caminho e com o Albergue reservado, caminharíamos sem a preocupação de não ficar sem vaga em algum albergue. 

Feita a reserva no Albergue Monastério de Carrasquedo, uma Ermita (Igreja, monastério ou convento antigo da era romana), mas sem conseguir visualizar sua localização, teríamos que procurar ao chegarmos na cidade. Para a nossa supressa, ficava a 1.500 metros fora da cidadezinha, em um bosque, com árvores altas, um lugar muito bonito.

Ao chegarmos, a moça que nos atendeu perguntou se hospedagem era para cinco pessoas? Respondemos que não; que havíamos feito reservas para quatro. A hospitaleira nos levou até as acomodações e nos passou todas as orientações, e se quiséssemos jantar teríamos que avisá-la até as dezessete horas. Avisamos que iriamos jantar e começamos a achar estranho, pois não chegava mais nenhum peregrino. Só tinha nós.

Descemos às 19 horas para jatar e a hospitaleira falou: “vocês estão em cinco, não é? Falamos que não, mas ela chamou a outra ajudante e perguntou: “eles não chegaram em cinco?” A resposta, novamente para a nossa surpresa foi: “Sim!”. Mais uma vez falamos que estávamos só nós quatro. Pediu desculpas, mais ela continuou pensando que estávamos em cinco.

Conversa vai conversa vem, descobrimos através da hospitaleira que iriamos ficar só nós no Albergue, que não haveria mais nenhum hóspede. Iriam trancar as portas de baixo e deixariam a porta de entrada encostada para, ao amanhecer, sairmos e continuar a caminhada. Ai começou o “treme-treme” das meninas. Pegaram o número do telefone do proprietário para qualquer emergência e não paravam de questionar a hospitaleira por que não iria ficar alguém no Albergue!? Se precisássemos de algo? Se chegasse algum peregrino? E assim por diante. Por fim, a hospitaleira ligou e falou com o proprietário, que nos assegurou que um primo seu viria dormir no Albergue, mas que chegaria após as 22 horas. 

Jantamos e fomos deitar. Por voltas das 23 horas, ouvi um barulho e acordei. Auxiliado pela clara boia de luz da rua que refletia para dentro do quarto (a luz do luar, que transpassava pela janela de vidro no alto do quarto), levantei e olhei as meninas, que dormiam profundamente. O barulho aumentou, como se alguém estivesse arrastando algo. Lene havia tomado comprimido para dormir; Bebel chegava a ressonar e Marihá nem se mexia. Passei pelas três e fui em direção ao corredor, para ver de onde vinha o barulho, pois achava que seria o tal primo do proprietário que viria para dormir. 

De repente um som de canto gregoriano vinha da capela. Desci a escada e eis que aparece o vulto que tinha visto em Roncesvalles. Desta vez fui atrás, até chegar à porta da capela. Tentei abrir, mas não consegui; estava trancada. Empurrei várias vezes, mas nada de abrir. Fiquei ali por alguns minutos ouvindo aquela música. Subi, e as meninas estavam do mesmo jeito de quando eu havia saído. E o canto foi silenciando e, assim, eu adormeci. 

Ao amanhecer, Marihá perguntou se alguém teria ouvido os cantos gregorianos da Carrasquedo. Respondi que sim, mas Bebel e Lene não acreditaram. Foi o assunto até Villafranca Montes de Oca. 

No dia seguinte, na saída de Villafranca Montes de Oca, o caminho, já de início, começa novamente com uma subida muito íngreme. Na hora que saímos estava muito escuro, apesar de já serem sete horas. Saí na frente e fui ultrapassando os peregrinos que já estavam em caminhada. Uma, em especial, me deixou intrigado. Era uma senhora, sem lanterna, caminhando no escuro. Quando a ultrapassei, fiz a saudação tradicional do Buen Camino; não fui correspondido. Já tinha caminhado uns cem metros a sua frente e olhei para traz. Estranhei, pois não mais a vi. Parei e esperei para ver se vinha. Nada. Passaram outros peregrinos, mas  nada da senhora. Continuei o meu caminho. 

Até Cebreiro, um pequeno povoado, não aconteceu mais nada de especial, mas eu continuava procurando as sombras que vinham me acompanhado. Saímos de Cebreiro às sete horas e, como na manhã anterior, também estava muito escuro. Na escuridão, os olhos dos animais brilham, como reflexo de lanternas. De vez em quando lá estava, no meio do mato, um novo brilho. 

Passamos por vários cachorros nesse dia. Um branco, deitado no meio da rua. Os peregrinos passavam e ele nem se mexia, permanecia indiferente. 

Foto: Maria Isabel V. Agapito

Outro, quando me sentei em um muro, para um breve descanso, veio por baixo dos meus braços, como se fosse muito íntimo. Pedi para Bebel tirar uma foto e ele fez pose. 

Um terceiro, deitado de barriga para cima, curtia os carinhos de uma peregrina alemã, que lhe coçava a barriga. 

Mas um, em especial, me deixou intrigado. Após o Alto do Poio, eu estava caminhando e passei por ele, que estava deitado ao lado do caminho. Percebi que fixou os olhos em mim. Como gosto muito de cachorros de grande porte, perguntei: “o que foi garoto?” E continuei minha caminhada. De repente ele se levantou e passou a caminhar na minha frente. Caminhava 50 ou 60 metros e parava. Olhava fixo para um ponto e depois para mim. Deixava eu me aproximar e continuava andando. Isso se repetiu por um quilometro e meio, até que se deitou e, novamente fixando os olhos em mim, senti que queria me dizer: “até aqui; agora você segue sozinho, pode ir tranquilo”. Passei por ele e agradeci em pensamento, acenando-lhe com um tchau: “fica com Deus meu amigo, e obrigado por ter me protegido”. Meu sentimento era de que ele fez aquele trecho comigo para me proteger de algo que não faço a menor ideia do que possa ser. Mas meu sentimento foi esse, e de que parecia ser a mando de alguém. 

Nossa programação era chegarmos a Santiago no dia seis de outubro, um sábado. Assim teríamos mais chance de participarmos do BOTAFUMEIRO.

Saímos de O Pedrouzo as 6:45 horas, pois queríamos chegar antes das 11 para assistir à missa do peregrino.

Estava escuro, com neblina e eu com aquele pressentimento de que ia ter o botafumeiro. Entramos em uma floresta de eucalipto, escura. Se apagássemos as lanternas não enxergaríamos nada. Lene apertava os meus braços com medo.  Clareou o dia e o tempo estava nublado.

Chegamos no Morro do Gozo e eu fui procurar as estátuas onde os peregrinos avistam a torre da catedral de Santiago, pois em 2014 não tínhamos visto. Como havia visto em um livro as duas estátuas e achado bonito, queria vê-las de perto. Elas ficam a uns trezentos metros do monumento. Batemos fotos e saímos rapidinho para chegar mais cedo na Catedral. Na chegada, a sensação de que iria ter o BOTAFUMEIRO, aumentou.

Um grande movimento de peregrinos, exposição de carros antigos, de barcos, muitos grupos de turistas. Fomos para porta de entrada da Catedral e eis que uma fila enorme nos aguardava. Entramos na fila e começou a garoar. Lene falou em comprar uma capa de chuva e eu respondi: “Que capa?! estamos fazendo o caminho a trinta e seis dias sem chuva; deixa ela nos purificar, lavar as poeiras do caminho”. Levamos mais de trinta minutos para entrar. Começou a cerimonia da missa e o padre veio com as vestes de Santiago. Sussurrei no ouvido da Lene: “vai ter o botafumeiro”. Ao terminar a missa, o padre anunciou que hoje seria um dia especial, pois teria o que todos os peregrinos anseiam em ver, o “botafumeiro”. Lene começou a chorar e eu, muito emocionado, agradeci a Santiago por proporcionar esse belo espetáculo, que poucos conseguem ver. 

“Botafumeiro” é um cerimonial formado por um enorme turíbulo com incenso fumegando pendurado por uma corda no teto da Catedral de Santiago. Puxado por oitos homens, balança de um lado a outro até muito perto do teto. Na antiguidade era usado para tirar o mau cheiro dos peregrinos. Hoje, só tem esse ritual nos dias festivos.

Após o botafumeiro, como é de hábito dos peregrinos, fui abraçar a Imagem de Santiago, que fica atrás do altar, com vista para dentro da Igreja. Para chegar até a imagem, os peregrinos passam por uma porta e sobem uma escada. Uns agradecem, outros pedem. Quando abracei Santiago, agradeci o belo caminho e, olhando para os bancos da igreja, lá estava aquele que me acompanhou por todo Caminho, sorrindo, como se tivesse cumprindo sua missão. Sai dali e passei ao lado do banco, para vê-lo de perto. Ilusão; não encontrei nada. Já havia partido.

Assim, concluímos, pela segunda vez, nossa jornada pelos Caminhos de Santiago de Compostela. Com minhas companhias inusitadas, tocáveis ou não, as que comigo convivem e as que já partiram, conclui, com minha amada esposa e as duas amigas, mais uma jornada de reflexões e aprendizados. 

Que “o espírito” de Santiago de Compostela nos leve, outras vezes, a percorrer outros trajetos dessa sempre encantadora e misteriosa jornada: os Caminhos de Santiago de Compostela.

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