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Foto do escritorJairo Ferreira Machado

Os Pés

Atualizado: 18 de mai.


Autor: Jairo Ferreira Machado Aqueles pés eram diferentes dos demais, comparados aos que tinham calçados, é claro, pois esses ele não podia vê-los, só imaginá-los confortavelmente calçados com meias e tudo de direito, e não como os seus e muitos outros pés conhecidos descalços, os dedos entortados das topadas, as solas encruadas das andanças, que eram pés pangarés, desqualificados, perto então dos das meninas-mocinhas da cidade – aquelas lindezas de pés – os seus eram lixos, mas haviam outros piores, os pés pretos, pretos mesmo não eram, pareciam uma panacéia quando o vento sopra nela, em cima preto embaixo branco, via melhor quando o moleque corria, sem esquecer o complemento das unhas, pode-se dizer também comprimento, pareciam umas navalhas afiadas, cheias de nódoas da lida, ainda que os lavasse à noite, esfregasse com bucha de cerca e sabão de tacho feito com cinza de fogão, soda cáustica e entranhas de porco, nem isso dava jeito, o barro, o pó do dia seguinte, os torrões, os rasgos da malícia, do arranha-gato, deixavam-nos como esfregões de chão, ainda inchados e as moscas vinha ali se saciarem do soro que saia das machucaduras, aqueles eram um pés sofridos, perebentos, que nunca tinham visto calçados, sem esquecer também daqueles outros pés, o de um moleque da roça, um negro brutamontes, que tinha a incumbência de defender ali pela direita do campinho às margens do brejo, lugar de muita erva-malícia e um vassoural de dar medo, onde ponta-esquerda nenhum se metia, e se metesse só se via aquele pesão o jogando pro matagal, logo o atacante era desistido de enveredar-se por ali novamente, de maneira que ao acabar a pelada aquele pedaço de campo estava devidamente roçado, feito pasto de cavalo amarrado, até que um dia ouvimos um estouro, ele tinha furado a bola com as unhas, foi a ultima vez que o chamamos pras peladas, mas nunca esqueci aquele pé, que a gente chamava de rodo, mas o pé mais delicado eu vi mesmo foi num caixão, o coitadinho do Tuniquinho, aqueles pés limpinhos, tinham cortados as unhas dele, tiraram as nódoas com caldo de limão mexerica, esfregaram, que até não pareciam mais os dele, devia de ser para o coitadinho chegar ao céu com mais dignidade, disso eu até duvido, que moleque que é moleque nunca ascende aos céus, ainda mais descalço, antes pena no purgatório, pisa em brasas, mas que aqueles pés pareciam de anjos, pareciam, mas eu que o conhecia, assim como conhecia-lhe os pés, sabia que aquilo não ia dar em nada, outro, um moleque ali da rua do cemitério, ele tinha os pés gordos, feito pés de elefante, que numa encontrada o adversário saía ganindo feito cão atropelado, um outro pé, esse morava às margens da estrada de ferro, próximo de um chiqueiro, o coitado vinha como um andar de ganso pela rua afora, ainda que a avó lhe tirasse os bichos de pé com agulha flambada e desinfetasse com querosene, queimasse as batatas, não adiantava, a ponta dos dedos dele mais pareciam salpicos de conta de lágrimas, daquelas que dá em brejo, ou umas dezenas de olhinhos de peixe olhando pra gente, ele parava num poste e se coçava, parava noutro, mas o pé mais desastrado vinha das tabocas, de um cafundó daqueles, pés mesmos nem pareciam ser de verdade, tal a desarticulação articular, desengonçados, os dedos empoleirados uns sobre os outros parecendo leitõezinhos no chiqueiro, um dedo já lhe faltava, decepou-o com o cacumbu, numa capina de arroz, mijou em cima, ele disse, e continuou capinando, nem tétano resistia àquela feiúra de pé, então, devido à semelhança dos fatos, estou escrevendo este texto sem parágrafo, que para se falar de pés de moleque, não precisa parágrafo, tudo vai dar num passado distante, como não se vê mais hoje em dia com tanta freqüência, há que sair pelos campos, das gerais, e foi aí que numa dessas minhas caminhadas, topei com eles, os meus pés, o moleque estava empoleirado em cima de um muro ao lado de uma cooperativa de leite, registrei-o de longe com minha câmera, mas quando cheguei perto e vi aqueles pés e quis dá um zoom perfeito o moleque saltou do muro e saiu disparado, e eu disse, esse aí sou eu, com meus pés e tudo, seria um registro fantástico para o facebook, mas perdi a caça, o moleque se enfiou entre um bananal e não mais o achei, agora, os pés, esses meus de hoje, bonitinhos, enfiados numa bota timberland, bem tratados, massageados, já foram coisa feia no passado, hoje, até cresceram um pouco, das tantas andanças. Mas tai uma coisa que merece um parágrafo, me orgulho deles!

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