Autor: Jairo Ferreira Machado
Não muito tempo atrás eu fui apresentado a um grupo de peregrinos de Florianópolis, SC, e desde então me tornei um peregrino também; agora, já com alguns quilômetros rodados: já fiz o Caminho das Missões e por completo o Caminho de Santiago de Compostela, o Caminho da Luz, o Caminho da Fé. Terminei recente o Caminho Real. Andei vários outros Caminhos pelas serras de Santa Catarina. E fiz também o Caminho da Ilha. Assim, sabidos os prazeres e as dificuldades vivenciadas em mim e nos outros peregrinos, durante estas andanças, procuro dar aqui, na condição de médico, algumas orientações.
Acrescento desde já, a quem não sabe, que sou médico homeopata; cito a especialidade para lembrar que o homeopata reconhece que o caminho para a saúde e bem estar passa pela prevenção. A natureza é a nossa mãe; e com ela mantemos uma atmosfera de harmonia. Integrando-se a este sentimento, você será um bom peregrino. Mas o bom peregrino precisa se conhecer e se respeitar: esta é a primeira e principal lição da peregrinação.
Certa vez eu ouvi de uma pessoa que falava sobre o Caminho de Santiago de Compostela, que para fazer o Caminho, bastava querer, por a mochila nas costas e partir. Discordei na hora; você desempenha melhor uma tarefa quando está bem preparado pra ela.
Eu ainda não tinha ido a Santiago, mas havia escutado uma história triste contada por outro peregrino que voltara de lá; é uma história bonita, vale à pena lembrar aqui, ressaltando o espírito de compaixão desse nosso companheiro.
Ele estava no caminho de Santiago, num dia de muito frio, ia passando e percebeu uma pessoa obesa, sentada à beira da estrada, já respirando com dificuldades. Tratava-se de um cardíaco; sozinho ali e sem forças para se levantar do lugar, os lábios e mãos já roxos do frio intenso, fatalmente aquela pessoa morreria ali. Assim, com a ajuda de mais uma peregrina, eles praticamente o carregaram alguns quilômetros até um albergue, tendo inclusive de levar também sua mochila.
Cito este exemplo, como prova de que precisamos estar em boas condições de saúde antes de por o pé no Caminho; nada contra quem vai por outras razões – até buscando alguma cura – mas o risco de não se conseguir fazer o Caminho, nestas condições, é grande. É claro que para se fazer o caminho é necessário estar preparado para frustrações passageiras, mas muita gente não chega lá, razão por que os cuidados preliminares são necessários.
Feito estas considerações, vamos às recomendações: Condicionamento físico.
Se você pretende fazer o Caminho com intuito de aproveitar os valores que o Caminho confere ao peregrino, que não seja somente à premiação da Compostela, vai precisar estar bem de saúde. Recomendo antes, atividade física regular, três a quatro vezes por semana, três meses, fazendo alongamento, musculação, de pernas e tronco principalmente, lembrar que você vai carregar peso equivalente a oito quilos, durante trinta dias ou mais.
Fazer também as caminhadas, já levando algum peso na mochila, para ir se adaptando aos esforços; subir morros contribui para fortalecer as pernas. Por mais que você esteja preparado espiritualmente, esta vantagem não é bastante; Santiago ajuda sim, mas o indivíduo precisa também ser responsável consigo mesmo. O Caminho exige tanto das condições físicas da pessoa quanto da força da mente.
Como se trata de muitos dias, como é o caso do Caminho de Santiago de Compostela e outros Caminhos longos, o estado físico se comporta como o elemento principal; a força deste é que alimenta o espírito e melhora a auto-estima da pessoa e faz com que ela chegue.
É claro que você sentirá dores; dores nos pés, nas costas; dores intensas até; é impossível fazer caminhada longa sem sofrimento físico; mas nada que um pouco de descanso, arriar a mochila no chão, parar dez minutos a cada duas horas andadas e chegando, tomar um banho quente, erguer as pernas pra cima, massagear os pés, alimentar-se bem e dormir, não possa resolver.
Sabemos da nossa capacidade de superação, mas a superação também tem seus limites; a sua mente tem seus limites. E você não quer e não pode adoecer; você não foi lá, no Caminho, pra isso. Então, aja com precaução: faça atividades físicas ao menos dois meses antes de ir pro Caminho. E vamos algumas orientações... Calçando as botas.
Começando pelos pés: cortar as unhas, deixando sempre uma sobrinha para proteger as pontas dos dedos. Se houver unha encravada, trate de cuidar disso antes, unha encravada não combina com caminhada, nem com rachaduras nos calcanhares. Antes de colocar o calçado, lubrifique bem a sola dos pés, mais as bordas, os calcanhares, e entre os dedos, com alguma emulsão; alguns usam vaselina; a pele fica escorregadia e evita os atritos, logo, evita também a formação de bolhas.
Particularmente, eu tive ótimas experiências com a emulsão de Propolina, um produto a base de própolis; encontrado em algumas farmácias do Sesi em Florianópolis. Pode também mandar manipular. Na composição de 60 gramas contém: lanete n., glicerina, própolis purificada, mel de abelhas, conservantes e água desmineralizada.
Andei o Caminho de Santiago inteiro e não fiz uma bolha sequer; não foi o que aconteceu com muitos peregrinos que ajudei a furar as bolhas por lá. Os pés, durante a caminhada, é a parte mais importante de nosso corpo; tenha com ele um sentimento mútuo: você cuida dele e ele lhe dá o prazer da caminhada. Tipo de bota:
Usei uma Thimberlay, más há outras marcas de igual, ou melhor, qualidade; vale comprar uns dias antes para se adaptar ao calçado; e vice-versa. Pessoalmente, eu prefiro a bota ao tênis, mas atualmente já existe bota-tênis bem confortáveis. Na descida dos morros, não esqueça do aperto do cadarço da bota, para melhor firmar o pé pra trás, assim, protege as unhas e as pontas dos dedos. Não recomendo calçado de solado fino; o Caminho é cheio de irregularidades e pedregulhos. Levar de sobra uma ou mais palmilha e calcanheira de silicone. Meia anti-bolha.
Já tem no mercado; adquiri nas lojas da Clinica dos pés, em Florianópolis, marca FEET, ou outras semelhantes na loja do Capitão Malagueta, estas têm um solado mais engrossado; creio que não tive bolhas, devido aos fatos citados e mais este tipo de meia; meia-fina, nem pensar! A papéte (franciscana) não pode faltar; ideal para depois da caminhada, depois do banho, enquanto os pés descansam; mas há quem caminhe também com ela; aí eu recomendo que se faça um reforço no solado; como, colar uma palmilha sobreposta à sola comum – isto diminui as conseqüências do impacto no chão, causado pelo peso da mochila.
Nunca usar meias, sem antes lavar; por causa de fungos e problemas do suor, a meia fica endurecida e contribui para as bolhas; aos pés, o que há de melhor, senão, você ficará a pé! Alongamento
Ta aí uma coisa que a maioria dos peregrinos não dá valor, ou, pra qual eles não têm muita paciência. Mas o alongamento, como o próprio nome diz, é para tornar os músculos e tendões flexíveis, evitar as conseqüências dos deslizes; os tendões, os músculos, devem estar sempre preparados para suportar as exigências da caminhada, uma pisada em falso, uma queda...
Lembrar que a musculatura está exposta ao frio, ao calor, as intempéries do tempo e tendem a se defenderem, e fazem isso, se recolhendo, se encurtando; aí é que a gente se machuca. Em qualquer momento de descanso, é importante o alongamento. Você afrouxa os músculos, os tendões, que agradecem e entram em sintonia com o seu corpo. Alimentação
Um dos maiores erros que percebi no Caminho de Santiago de Compostela foi a alimentação incorreta. Alguns peregrinos, por questão de economia ou mesmo desconhecimento de causa, passam a maioria dos dias comendo sanduíches, muitos fazendo uso freqüente de refrigerantes; para o tamanho do esforço que se fará e a conseqüente perda de sais minerais, é uma alimentação muito pobre para as necessidades do corpo.
Como são muitos dias, o enfraquecimento e adoecimento físico, fatalmente vão ocorrer. E em conseqüência, o esgotamento espiritual; e não é isso que buscamos lá no Caminho.
Há que se fazer, no mínimo, uma boa refeição por dia: muita salada, azeite de oliva, deve-se aproveitar aquilo que há de bom por lá; frutas, sucos naturais; a proteína é muito importante, senão perde-se muita massa corporal; o carboidrato não substitui a alimentação básica: o peregrino é um atleta que passa por uma longa exigência do corpo e precisa de massa muscular. Nunca usar produtos Diet ou Light durante as caminhadas de longa duração; o esforço é muito grande e arrisca a pessoa adoecer pela falta de nutrientes. A mochila
Tende-se a levar na mochila mais do que se precisa; é a nossa cultura do ter. Estamos sempre achando que vamos precisar mais do que podemos carregar; e mochila com excesso de peso: pode ser trágico para o caminhante! Nunca queira imitar àquele que leva mais peso, sua estrutura física pode ser diferente da dele, o seu condicionamento físico também; então, ajeite o peso conforme as suas possibilidades e necessidades do dia-a-dia; leve só o estritamente necessário. O que não deve economizar é num bom saco de dormir. O sono é o melhor reconfortante do peregrino – descansa o corpo e a mente. Higiene
Durante os dias de caminhada, podendo, tome dois banhos, um quando chega da caminhada e outro pela manhã; digo isso, por que, habitualmente se dorme em colchão e travesseiro que pessoas estranhas já dormiram antes; por mais que o albergue seja limpo, nem todas as pessoas, o são: observei isso lá no Caminho de Santiago. Lembre-se que ali caminha gente dos cinco continentes; o banho desperta e previne doenças; fungos, germes patogênicos que por ventura existam nos tecidos da cama. Capa contra chuva
São duas capas; uma própria pra mochila e outra pra você; lembre-se que tudo que você tem e precisa, naqueles dias, está na sua mochila. Nos dias de sol, retire a capa da mochila, os raios ultravioletas são germicidas e o sol elimina a umidade dos tecidos de dentro. Presenciei lá um peregrino praguejando a sorte, chorando sobre suas coisas molhadas.
Eu também estava molhado, mas havia ainda roupas enxutas dentro da mochila; graças a uma capa. Você precisa estar preparado para as intempéries do tempo; não há no caminho nenhum lugar onde você possa se esconder da chuva e mesmo que houvesse, caso chova o dia todo, você não vai querer ficar esperando a chuva passar; talvez nem possa mesmo – você tem uma programação e um percurso a ser cumprido; vai precisar amassar barro sim.
É neste momento que a bota supera o tênis; o couro protege melhor os pés e a meia. O seu condicionamento físico também é condição fundamental para que você não faça da caminhada um ato de crucificação e comece a se xingar; se maldizer. Vale a pena se preparar antes. O cajado
Muita gente não sabe usar; carrega o cajado em vez de fazer do cajado um aliado para os momentos mais difíceis, como nas subidas e descidas dos morros; uma das suas mãos, se não estiver usando dois cajados, deve permanecer livre. Se você escorregar, terá como se apoiar.
Entendo que o cajado deva ter uma ponta, modo se firmar melhor no chão, principalmente nos lugares escorregadios. Vejo muitos cajados com a extremidade que toca o chão arregaçada pra fora; pode falhar, escorregar, na hora em que se mais precisa dele. Ideal ser de madeira resistente, ou de fibra de carbono, pra suportar bem o peso.
Certa vez ouvi um padre comparar o cajado à figura onipresente do grande Senhor; acabada a missa, fui à sacristia conferir se tinha ouvido direito e ele me confirmou o que dissera. E desde então, eu me sinto mais seguro com o cajado; já me sentia antes, para os eventuais riscos da peregrinação: muitas vezes o peregrino anda sozinho, quero dizer, sem a companhia de outro por perto, em lugares ermos, pode necessitar se defender; embora esteja com Santiago, o pai dos peregrinos. Mas o cajado é o símbolo maior do peregrino; então, que seja o melhor! Protetor solar
Esta é outra desobediência peregrina: não passar o protetor solar. Deve ser o FPS 30 ou mais, a cada duas horas, entre dez horas e às quinze da tarde. Mais nas áreas expostas ao sol. No Caminho de Santiago usei o tempo todo, uma camisa de manga comprida, mas assim mesmo, passava protetor solar no dorso da mão; quando não, usava uma luva de proteção contra os raios ultravioletas, uv line, tem em algumas Farmácias em Floripa. Levei também um chapéu da mesma marca: tipo dos legionários, com aba caída pra trás, para proteger orelhas e pescoço.
A maioria dos peregrinos que conheço é morador de cidade, a pele já imprópria para os raios solares; assim, não devemos nos descuidar; o sol é feito os remédios; é remédio, na dose certa; é veneno, nos excessos. De forma que, voltando da caminhada prolongada, deve-se consultar um Dermatologista. Carregar ou não a mochila...
Não carregar! Esta é uma atitude que venho adotando há alguns anos, eu e mais alguns peregrinos (as). Quando se trata de um grupo grande dividimos as despesas, mandamos as mochilas de taxis ou outra condução qualquer para a pousada seguinte. Há quem discorde e carrega sua própria mochila, está na preferência de cada um. Beirando os meus 70 anos, não quero parar de fazer as minhas prazerosas caminhadas porque fui escadeirado pelo peso da mochila e de um orgulho a toa...
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