Autor: Quirino Pedro Mannes Em 1996 tomei contato com o Caminho de Santiago através da leitura do Diário de um Mago e reportagens diversas, além de um especial da TV Globo. Compreendi de pronto que ali havia algo, um encantamento, um tesouro, que eu queria muito desvendar. Percebia que era algo que, a partir daquele momento, era só meu, e que eu poderia fruí-lo como quisesse. Era a possibilidade de desafiar os meus limites, um tempo totalmente à minha disposição, uma viagem interior, um retiro, um tempo para rever a minha vida. A partir daí comecei a assediar a minha família para que eles entendessem que eu deveria fazer aquela aventura e, claro, que eu merecia gastar aquele dinheiro. A magia do Caminho tomou conta de mim de tal sorte que todas as dificuldades pareciam pequenas, muitas coisas importantes foram colocadas em segundo plano como, por exemplo, o ingresso nesta Fraternidade. Assim no dia 12 de agosto de 1998 às seis horas da manhã eu estava no sopé do Pirineus franceses começando uma jornada de 31 dias e 708 km de muito sofrimento físico, mas também de muito enlevo espiritual, de êxtase perante a solidão com Deus e a natureza. No silencio das florestas da Navarra, na brisa quente da Meseta Espanhola sem fim, no verde dos campos galegos, na penumbra das igrejas e monastérios quase abandonados o diálogo interior se dava com grande intensidade. A mente, esta criança irrequieta, tentava pregar suas peças, induzir-me ao sofrimento, porém minha criança interior, que é o nosso ser originário, obra de arte do Criador pôde emergir com toda a sua beleza. Este meu primeiro Caminho foi de muito emoção, eivado também de muita ansiedade, o que me levou, em certos dias, a caminhar mais do que devia; a assumir o Caminho de outras pessoas, não respeitando meus próprios limites. Assim no final do Caminho rolou um sentimento de vazio por algo inconcluso. Sabemos que o excesso de emoção intoxica e distorce a realidade, mas longe de mim a aridez do racionalismo puro. Quando retornei, outro sofrimento, o de voltar ao mundo real. Parecia que a minha família e o meu trabalho me eram estranhos. Jamais tivera tais sentimentos! Decidi então que dentro de dois anos percorreria novamente o Caminho, tomando o cuidado de ser dono das minhas emoções e resgatar, limpar tudo aquilo que de alguma forma me proporcionara sofrimentos desnecessários e terminar uma obra de arte que estava inacabada. Passaram-se os anos sem que eu encontrasse as condições para repetir a façanha do Caminho. Durante esse tempo todo era raro o dia em que não me contatasse de alguma forma com o Caminho. A Internet é uma boa forma de preencher nossa solidão e manter-nos plugados naquilo que queremos pesquisar. Com a aposentadoria um pouco precoce, principalmente para que pudesse equacionar problemas familiares, surgiu a oportunidade de criar novamente as condições para que pudesse me ausentar por 45 dias. Interiormente a justificativa era clara para mim: eu merecia fazer o Caminho novamente. A minha mente ajudou a engendrar estas condições, a fazer com que meus familiares dissessem: mas claro, você merece! Dei atenção adequada ao planejamento da minha ausência, de sorte que ficasse o mais leve possível para minha esposa, a qual da outra vez ficou com um fardo quase insuportável. Como não gosto de repetir experiências decidi que percorreria o Caminho Aragonês o qual, depois de cinco dias, desemboca no Caminho Francês em Puente la Reina. Com o tempo a meu favor optei por iniciar a caminhar em Lourdes na França porque tenho um grande carinho pela mãe do meu Mestre. Lourdes é um lugar emblemático tendo em vista a humildade do lugarejo mas ao mesmo tempo a grandeza da sua irradiação espiritual. Dentro do complexo religioso de Lourdes não há comércio e tudo é silêncio apenas quebrado pelo leve barulho das águas azuis-celestes do rio Gave du Pau. O carisma de Lourdes é o tratamento dos doentes pela água que nasce da fonte que se formou do buraco que Bernadete Subirous cavou por ordem de Nossa Senhora. Milhões de litros de água brotam desta fonte no interior da gruta que é recolhida e distribuída em estado natural para os banhos dos doentes e nas dezenas de torneiras para coleta dos peregrinos. Oitocentos voluntários em rodízios mensais cuidam e conduzem os doentes para as procissões noturnas, que são um espetáculo à parte. No dia 02 de maio, dia do meu aniversário, comecei a caminhar a partir de Lourdes. Sabia que tinha pela frente um percurso de seis dias até Col Somport, no alto dos Pirineus franceses, divisa com a Espanha. O caminho na França não está sinalizado sendo que eu mesmo construí este roteiro. Reduzi o trecho francês para cinco dias passando por Estelle Betharram, onde existem as maiores grutas da Europa; Arudy, onde o único hotel estava em férias coletivas e tive que dormir numa casa rural. Depois Sarrance onde não há hotel nem bar. Dormi no claustro abandonado da igreja. Em seguida Borce aonde cheguei ensopado e que tem o albergue mais lindo de toda a viagem, um prédio antigo reconstruído e lá eu dormi sozinho. Nunca esquecerei o carinho com fui tratado por Madame Eliane no único bar do lugar, a qual me brindou com um bom vinho nacional e música de João Gilberto e Caetano Veloso. O dia seguinte me esperava com 22 km e aclive de oito graus em média, em acostamento de rodovia e estrada de montanha, com chuva, frio e neve. Os últimos quilômetros até Col Somport foram um teste definitivo de teimosia e tenacidade. Pude avaliar que magnífica máquina é o corpo que Deus nos deu e quanto mais exigido mais novo fica. Só um número para amostra: caminhei algo em torno de 1.400.000 passos. Col Somport é uma estação de esportes de inverno, freqüentado inclusive pelo Rei Juan Carlos. O instrutor de esqui do Rei tirou uma foto minha. Cheguei neste sítio no dia seis de maio e o único ser vivo naquelas montanhas parecia ser o dono do albergue Aísa. A partir daí comecei a percorrer o Caminho Aragonês durante seis dias até Puente la Reina, tendo à minha direita o onipresente rio Aragon, muito encachoeirado e cheio de represas e captações industriais que lhe roubam a fluência e a beleza. Este percurso de mais ou menos 150 quilômetros é muito acidentado, com trilhas íngremes e despenhadeiros perigosos. Pernoitei em Jaca, capital da província de Aragon, de onde fui visitar as Grutas do Monastério de San Juan de la Penha no dia seguinte dormindo no pueblo de Santa Cília. A próxima parada foi em Artieda, um pueblo no alto de uma montanha e sessenta e nove habitantes. Ali jantei com pessoas de sete países diferentes. No dia seguinte encarei uma trilha muito fechada de mata. Tudo estava fuçado por javalis atrás das trufas. Naquele fim de mundo existe uma calçada romana ainda bem conservada. Depois de trinta quilômetros de sobe e desce cheguei a Sanguessa um caco e o albergue estava cheio. Fiquei num hostal e me tratei. O dia seguinte me pregou o maior susto do Caminho. Depois de andar três quilômetros, senti uma fisgada na panturrilha e que refletia em toda a barriga da perna. Simplesmente não conseguia andar. A perna direita não obedecia. Me apavorei! Chamei meu anjo da guarda, Santiago e NS de Lourdes. Comuniquei-lhes que eu não tinha intenção absolutamente de terminar meu Caminho naquele ermo. Diante de mim estava uma subida de uns oito quilômetros. Falei em voz alta o que cada um deveria fazer: massagem, gelo, ação curativa e apoio para o peso da mochila. Depois deste repto voltei a caminhar lentamente e, para minha surpresa, a dor foi diminuindo e a perna foi se soltando, de sorte que seis horas depois eu chegava no albergue de Monreal. Dormi bem e acordei com pouca dor para encarar o último tramo do Caminho Aragonês. Destino: Puente la Reina, como o nome diz, existe lá uma ponte famosíssima mandada construir pela rainha Uraca, esposa de Sancho I, para que os peregrinos pudessem transpor o rio Arga. No meio dos campos de trigo surge solitária a igreja de Santa Maria de Eunate em forma ortogonal, a qual é um monumento da arquitetura templária. Há algo especial nessa igreja que toca a todos que nela entram, sendo que a sua origem é motivo de controvérsia. O Caminho Aragonês é menos concorrido do que o caminho francês porque só agora as entidades e o governo espanhol vem dando maior atenção à sua manutenção, sinalização e divulgação. Faz parte do caminho que na Idade Média vinha da Itália, passava por Montpelier, Toulose e Col Somport. Consta que foi percorrido por São Francisco de Assis por volta do ano de 1250. Naquela época havia caminhos que vinham de todas as partes da Europa e todos se juntavam em Puente la Reina. Para se ter uma idéia da importância do Caminho, no final do século XI, um terço de toda a população da Europa tinha peregrinado para Santiago de Compostela. Três dias depois de partir de Puente la Reina na baixa Navarra, chega-se a Logroño que é a capital da Província de La Rioja dos melhores vinhos da Espanha e pelo ufanismo local, os melhores do mundo! Cinco dias depois chego a Burgos, a cidade de El Cid em plena Meseta Espanhola que é um planalto imenso todo coberto de trigais e muita irrigação porque o clima é quente e desértico. Oito dias depois entro em Leon, cidade fundada ainda pelos romanos onde se destaca a sua catedral gótica, uma das mais lindas do estilo, particularmente por seus vitrais. Burgos também tem sua catedral gótica. São as duas maiores cidades do Caminho. Ao todo existem 21 catedrais góticas na Europa, sendo que a maioria está na França. De Burgos a Leon são mais 200 km de caminhada pelos campos sem fim da Meseta. O trigo e a cevada cobrem toda a terra com um verde de vários matizes, de acordo com as diferentes cultivares e fases de crescimento. O vento ainda é frio em meados de maio, mas o sol já castiga o caminhante. Talvez seja esse o trecho que mais mexe com o peregrino por causa da solidão e poucos motivos de dispersão. Obriga-se a tomar conhecimento de si mesmo, a mente vai silenciando e o espírito passa a comandar a vida. A vida moderna tem todos os ingredientes para a dispersão e sem silêncio interior não pode haver crescimento espiritual. Este crescimento não está condicionado a pertencer a esta ou aquela religião, embora a sua finalidade seja contribuir para isso. Com mais cinco dias de caminhada chega-se a Villafranca Del Bierzo. Existe lá uma igreja de Santiago que na antiguidade concedia as mesmas indulgências que Compostela para as pessoas doentes, uma vez que as agruras e perigos do caminho destroçavam os peregrinos. Daqui se entra na Galícia depois de subir 28 quilômetros de montanha até o Cebreiro, onde ocorreu um milagre igual o de Lanciano na Itália, por volta do ano de 1400. Ali é sempre frio e chuvoso. Dormir numa choça celta é uma experiência ímpar. Agora sete dias nos separam de Santiago de Compostela. A Galícia é encantadora pela sua natureza e pelo seu povo alegre, muito diferente do fundamentalismo basco ou da dureza castelhana e leonesa. A Galícia sempre me lembra o Salmo 22 : "O Senhor é o pastor que me conduz: Não me falta coisa alguma. Pelos prados e Campinas verdejantes Ele me leva a descansar. Para as águas repousantes me encaminha E restauram as minhas forças". Por toda parte vêem-se pastores conduzindo suas ovelhas para os prados verdejantes e senhoras aboiando ou tangendo suas vacas de ida ou volta das pastagens. Se você levar um tombo na Galícia, vai cair com certeza numa bosta de vaca. A gastronomia da Galícia é inesquecível. Não comer o polvo do Ezequiel em Melide é como ir a Roma e não ver o papa. A chegada em Santiago provoca certa depressão nas pessoas porque significa o fim de algo que deveria ser o clímax mas não é. O mais importante é o caminhar e não o chegar. Caminhar faz parte da nossa estrutura antropológica. O ser humano na sua fragilidade animal teve que migrar, procurar abrigo e comida para suas crias. A Catedral de Santiago é uma mistura de estilo românico, gótico e clássico. É um conjunto impressionante. Estar em Santiago, sentar-se ao sol nas escadarias da Catedral, encontrar com os peregrinos que foram nossa companhia em algum momento, abraçar o santo, assistir a missa do peregrino ao meio-dia, ver o botafumeiro imenso em movimento na nuvem de fumaça e fogo, pessoas de todas as línguas, credos e condições se relacionando sem a menor dificuldade, tudo é emocionante, mágico e não sai mais do coração. Quando se entra na Catedral a gente cai literalmente de joelhos para agradecer ao grande Arquiteto dos mundos a graça da vida, da alegria, da saúde, das pessoas que amamos. Finisterra é uma ponta que avança no Atlântico, caminho de três dias a pé, porém eu o fiz de ônibus. Lá eu acompanhei o que o cerimonial manda: queimar algumas roupas velhas, dar um mergulho pelado no mar e catar vieiras que são o símbolo de quem foi a Santiago e viu o oceano, o fim da terra. Alguns ingredientes me parecem fundamentais para a melhor experiência do Caminho: - O silêncio: O caminho não é para tagarelar, mas sim para escutar. Escutar o meu interior, a criação que me rodeia, a Deus. Mesmo acompanhado, o bom é andar em silêncio. - Não ter pressa: Ao longo do Caminho me ficou evidente que o mundo não crê em Deus, não tem experiência do sagrado porque não tem silêncio e tem pressa demais. O acesso ao mistério é lento, sem pressa, andando ao ritmo humano. O cotidiano exige de nós velocidade, respostas rápidas, mas no nosso interior a velocidade pode ser zero, sem stress, sem ansiedade. - A solitude: Estar só em sua inteireza perante o céu, a terra e o mar, perante Deus. O meu melhor companheiro sou eu mesmo. - O esforço: Andar, andar e de novo andar e daí andar mais ainda com calor, frio, encharcado de chuva e a mochila pesando cada vez mais, os pés doendo, as bolhas sorrateiramente aparecendo. Um comodista não faz o caminho na sua íntegra: pega ônibus, carona, evita a senda e não dorme no albergue. - A sobriedade: Não comer em excesso, mas comer bem. Degustar o que puder da melhor maneira. Tomar todos os vinhos, qualquer vinho, se possível um Rioja, um Somontano ou um Duero, sem se embebedar, mas sempre em companhia dos peregrinos que encontrou durante o dia. - A gratuidade: A maioria dos albergues é grátis, o sorriso é grátis, o sol é grátis, Deus e a vida são graça. Os hospitaleiros que trabalham nos albergues o fazem voluntariamente. - A confraternização: A diversidade das línguas e culturas não é empecilho para cultivar o auxílio mútuo, a cozinha comunitária, a troca de experiências, o carinho, o ânimo, a palavra amiga, o sorriso. Brasileiros, portugueses, espanhóis, americanos, ingleses, canadenses, alemães, franceses, suecos, irlandeses, galeses, australianos, neozelandeses, japoneses, italianos, austríacos, suíços, holandeses, sul-africanos, para citar alguns povos que encontrei, se entendem como em Pentecostes. Alguns brasileiros gostam de fazer lá a sua patota de mesma língua. Parece-me que perdem uma das coisas mais importantes do Caminho. Por essa razão, penso que a melhor forma de fazer o Caminho é partir só da sua terra. No intuito de ajudar, às vezes, corre-se o risco de fazer o caminho da outra pessoa e não o nosso. O românico: É grande o número de monumentos de arte românica ao longo de Caminho: igrejas grandes e pequenas, claustros, ermitas, monastérios, cruzeiros compõem símbolo e expressão de uma outra realidade. Não é uma arte razoável, é sagrada. Na admiração de toda essa arte não se pode esquecer todavia todas as angústias, sofrimentos e orações dos maçons que choraram no meio dessas pedras. A Espanha parece um grande canteiro de obras na restauração de todo esse patrimônio que estava em ruínas. Trata-se de responsabilidade do Estado a sua preservação. Em 1850 a desamortização de Mendizabal expulsou os monges dos seus mosteiros e tomou suas terras para a reforma agrária. Creio que a medida tenha sido justa, porém não na forma porque os monges foram para o meio da rua e o patrimônio cultural foi sendo dilapidado durante os últimos 150 anos. O peregrino também tem um decálogo que ele dever seguir à risca: 1º Seguirás as flechas amarelas sobre todas as coisas. 2º Não percorrerás quilômetros em vão. 3º Não descansarás nem em festas. 4º Telefonarás para o teu pai e a tua mãe. 5º Não pararás. 6º Não levarás meias sujas. 7º Não te queixarás. 8º Não dirás falsas distâncias ao contar. 9º Não te permitirás pensamentos e desejos de desistir. 10º Não cobiçarás as bolhas alheias. Quando termina o Caminho, nos perguntamos: e agora? Esse parece ser o grande desafio dessa nova Era que estamos vivendo, assim como é terminar o Caminho de Santiago. E agora? Aquário é o signo da liberdade e da igualdade humana, sim, mas também é um signo fixo que acredita em idéias, e isso também é perigoso. Se você acredita demais em suas verdades pessoais, o Outro com suas outras verdades pode significar uma ameaça. Há também o risco de esquecermos as pessoas de carne e osso e passarmos a acreditar, por exemplo, que o sacrifício de algumas dúzias - ou algumas centenas - não são muito importantes se o fim é nobre, seja lá o que se esteja considerando nobre. A Era de Peixes teve tanto a magia como os demônios assustadores característicos desse signo, e isso nos possibilitou coisas maravilhosas e terríveis. A Era de Aquário nos traz a possibilidade de construir uma sociedade humana onde reine a justiça e a fraternidade e onde não haja fronteiras, desde que consigamos fazer o Caminho interno e nos alegrarmos com a realidade humana de diferenças e com o duro trabalho emocional e espiritual que ainda temos que fazer para viver o divino interno e percebê-lo em tudo e todos que cruzam nosso caminho. É assim que podemos usar a força de Leão, da criação individual, para trilhar essa estrada aquariana que se nos apresenta. Ultréia, para todos nós! Gracias, SANTIAGO! Blumenau, 26 de setembro de 2003.
Relatos e Reflexões Sobre o Caminho de Santiago
Atualizado: 18 de mai.
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