Autor: Lígia Maria Knabben Becker
Totalmente nua, cabelos soltos e pés na terra davam àquela mulher o benefício da segurança e equilíbrio. Encharcara-se sob a chuva de vários verões que parecia ter o dom, com seus múltiplos e longos dedos, de massagear e curar seu corpo inteirinho. Plenitude conquistada ao longo dos anos acumulados com os sopros da infância, da juventude, e agora, da maturidade. Permitia-se. Mas nem sempre fora assim.
Seu corpo maltratado lhe sussurrava as dores armazenadas durante anos a fio: seus medos e culpas prendiam seus tendões à masmorra da dor diária, suas alergias brotavam impiedosas quando se rebelava das tiranias masculinas aceitas dentro da condição feminina, seus joelhos cansados de pisar tortuosos caminhos sentiam o peso das tarefas acumuladas, e adoeciam, assim como os ombros se curvavam à carga exagerada dos problemas que circunvagavam pesadamente ao seu redor, massacrando a cervical e a lombar.
A raiva engolida e não falada lhe trazia todas as "ites" de garganta e as emoções trancafiadas a muitas chaves dentro de si explodiam em gastrites e azias. Sapos havia engolido centenas. Muitos embrulhados em arame farpado. Outros, com espumantes caros e anestesiadores.
Sobreviveu.
Ela era um somatório das heranças familiares, religiosas, políticas e também da sua escolha profissional (mesmo com a interferência familiar não deixara de ser sua a opção mais favorável), da pressão da sociedade para constituir família, do partilhar uma vida a dois, filhos e a interferência deles, ad eternum.
Construíra uma mulher que se apaixonara cedo, quase menina, breve, mas intensamente. E esse primeiro e tão proclamado "amor" ficara registrado em cada célula do seu corpo e dera lugar a outro "amor" convencional, complicado mas estável, e que acreditava ser "até que a morte os separe". Ou não? O amor continuava entre aspas.
Duvidara tantas vezes das suas escolhas, das regras cumpridas sem convicção naquele mundo cheio de fantasias, crenças e convenções.
Família, família, família. Sempre a família reinava soberana em sua vida preenchendo cada segundo do seu viver, tapando sua boca, seus ouvidos e seus olhos. Lembranças aos três macaquinhos! De repente, vivenciava o outro lado, extremo, quando se vestia de superpoderosa sem delegar nada, sem ouvir alguém e sempre dando a última palavra.
Mas, cansou. Melhor, compreendeu que ao romper esse norte exclusivo e nutrir sua alma esquecida de si mesma num porãozinho da sua consciência se completaria ainda mais. Grande salto sem deixar de ser apavorante e desafiador, afinal uma coisa não deveria excluir a outra mas é tendência feminina o enveredar-se por caminhos idealizados (ou teria sido apenas sua aquela bússola?).
Sua verdadeira paixão foi se afirmando através dos filhos e netos, das caminhadas, das amigas, dos livros e a da escrita, poderosa, visceral e catártica. Aquela que escorria livremente dentro dela feito sangue nutridor da sua alma feminina, ora assustada e vergada pela solidão, ora exuberante e frutificadora.
Agora já havia consumido sua juventude e suas ilusões desvaneciam-se a cada alvorecer daquela sua vida sem excessos empurrando-a para um viver simples e corajoso o suficiente para não seguir à risca o manual de instruções que havia traçado para si sem medo de perder-se de si mesma. GRITAVA! GRITAVA! GRITAVA! Nenhum som se propagava ao seu redor...
Um Grito de Mulher
Atualizado: 18 de mai.
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