Há muitas maneiras de se olhar o mundo e caminhar pode ser uma delas.
O calendário dizia que era dia três de fevereiro de 2008. Ao som do vento na janela do seu quarto, misturavam-se o guinchar dos pinguins, os grunhidos dos elefantes e lobos-marinhos, os estouros dos blocos de gelo desprendendo-se dos Glaciares, o seu próprio bocejar…
Ela acordava agora, já em casa… rememorava… Sua aventura de treze dias (iniciada em 21 de janeiro até 2 de fevereiro) pela Patagônia Argentina, fora mais uma experiência singular registrada e filtrada pelos seus sentidos que ia se desenrolando na sua mente, preguiçosamente, em um caleidoscópio de imagens, sons, sabores, cheiros. Também sentimentos e emoções.
A experiência já fazia parte do seu ser, impregnada aos seus ossos e em todas as suas células.
A bordo de um Beagle da Imperatriz, cansado e sem revisão, 30 viajores vão. E param exageradas vezes. Mas chegam…Mi Buenos Aires querida!!!
O tango tocado, cantado e dançado na Ventana, (ai que triste ela se sentia, não sabia o porquê da melancolia ao ouvir aquele ritmo tão vibrante) o colorido Caminito, a Casa Rosada, a Plaza del Mayo, a calle Florida, o não tão bom almoço Siga la Vaca, num apertado roteiro na capital argentina .
Depois, Puerto Madryn, a 1500 quilômetros de Buenos Aires. Ufa! Cidade de clima extremamente árido onde a chuva atinge cerca de 200 milímetros cúbicos por ano, contava com 3 mil habitantes até 1970 e hoje, com a abertura para o turismo, a população saltou para 85 mil pessoas. Pipocam lojinhas, restaurantes e hotéis, Cassinos e Museu Oceanográfico, tudo pertinho das duas (e únicas) ruas principais. Veio o estranhamento inicial por serem os dias tão grandes com sol até quase às 23 horas.
Lembrava-se do passeio à Península Valdés, província de Chubut, a 170 quilômetros de Puerto Madryn, na looonga estrada de cascalho por onde transitam pela estepe, bichos característicos da Patagônia como a mara (que não é Malagueta) é um roedor de pernas longas, o guanaco (que lembra a lhama) além de espécies importadas como ovelha e coelho, quase praga de tantos. No extremo leste da península se localiza a Punta Delgada, e ao norte a Punta Norte, refúgios de lobos e de elefantes-marinhos, aqueles com tromba e parecidos com foca, paradões, porém senhores de haréns, das gaivotas, dos cormorões (aves parecidas com pinguins mas que conseguem voar), e os pinguins-de-magalhães. A grande ausente tinha sido a baleia Franca Austral, apenas em agosto e setembro elas podem ser vistas. Um perfeito exemplar, em esqueleto enorme foi apreciado por ela no Museu.
É um santuário da natureza e por isso mesmo declarada Patrimônio da Humanidade. Numa ponta, a Caleta Valdés, na outra, os abraços dos Golfos San Matias, San Jose e Golfo Nuevo. A Península Valdés é extensa (3600 quilômetros quadrados) é pouco populosa, daí o gostinho bom de percorrer um lugar pouco explorado, era sentimento dela ou existia realmente a soledad Patagônica?
Lembrava-se do sol, da temperatura elevadíssima para essa época do ano nessa região, da pele seca e o corpo implorando por água a todo instante. E da sua mala lotada de roupas para frio!
A imagem de El Calafate tomava forma na sua mente. Sentia na boca o gostinho da fruta calafate, roxinha, redondinha e ácida. Em profusão nos arbustos espinhosos que abundam na região tem seu aproveitamento em geleias, doces, sorvetes e licores. Diz a lenda que quem não come o fruto não volta à Patagônia. Ela comeu!
Tipicamente turística, El Calafate é a cidade de veraneio do casal presidencial Kirchner, onde nada custa menos de 30 pesos (ou 10 dólares), pudera, é um lugar desenhado e esculpido pela natureza, dos Glaciares esplendorosos onde o gelo muda de cor quando envelhece. No início, é branco. Com o tempo, fica mais comprimido e ao efeito da refração da luz do sol cria vários tons de azul. Na Patagônia, o Perito Moreno é o glaciar mais acessível aos turistas, a 89 quilômetros de El Calafate.
Seu nome homenageia o explorador (e perito) Francisco Moreno, que estudou a região no século 19 e contribuiu na delimitação da fronteira com o Chile. Enquanto outras geleiras têm diminuído com o aquecimento global, o Perito Moreno se mantém estável, avançando e retrocedendo de acordo com a época do ano. São 30 a 60 metros de altura de gelo que começa a se formar nas montanhas, a cerca de 1500 metros de altitude. O gelo se acumula e, aos poucos, desce até dividir em dois um dos braços do Lago Argentino. Regularmente, pedaços de gelo se desprendem do Perito Moreno e caem no Lago. O mergulho estrondoso é semelhante ao de uma tempestade ou ainda de fogos de artifício. Depois de alguns minutos submerso, o iceberg sobe à superfície do lago, ficando apenas visível 15% do seu tamanho.
Os passos da sua caminhada sobre o gelo ainda ressoavam aos seus ouvidos. Emoção e tanto! Única! Sob seus tênis foram instalados grampones, grampos de aço fortemente amarrados aos pés dando estabilidade sobre o gelo impedindo escorregões e quedas sobre o caminho glacial duro e liso, cortante até.
As surpresas: grutas azuis, pequenos riachos, abismos assustadores, partes acinzentadas das geleiras feitas pelos sedimentos rochosos (as Morenas) e o apoteótico final do trekking com alfajores e uísque on ice literalmente…. Tudo isso vivenciado sob a alternância do clima-sol, chuva fina, vento, frio…Neste momento, ela agradeceu .
Toda aquela grandiosidade trazia o esquecer da longa e tumultuada viagem de ônibus até ali, da falta de água no hotel, da poeirenta e ventosa cidade, enfim, de todos os senões previsíveis das viagens.
E o cordero patagônico? Rendera-se a ele, mesmo não sendo tão carnívora. Depois de quatro horas na brasa, a carne se desmanchava no prato, molhadinha por dentro, crocante por fora. Seu sabor singular também se deve ao fato de os animais se alimentarem em pastos de água salgada, contou-lhes a guia.
E o cheiro bom da lavanda bem na entrada da ponte que dava para o centrinho da cidade? E as roseiras espalhadas pelas ruas?
E a caminhada ao Cerro El Chaltén ou Fitz Roy? (nome do capitão do Beagle). O Monte da Fumaça, como o chamavam os índios Tehuelches por estar quase sempre envolto em nuvens parecendo fumaça, se encontra na zona norte do Parque Nacional dos Glaciares, na província de Santa Cruz e é a atração máxima para a prática do alpinismo. A localidade de El Chaltén, capital nacional do trekking, conta com serviços para todo aquele ávido de aventura, em apenas uma rua principal, diga-se a verdade. O morro granítico destaca-se entre o milenar gelo e suas agulhas circundantes. Tinha grande fascinação pela história de povos indígenas, lembrou-se de ter comprado alguns livros em El Calafate sobre os povos indígenas da Patagônia, altos e fortes, de ‘’patas’’grandes uma das versões da origem do nome. Outra, é a de que o explorador Fernão de Magalhães possa ter adotado o nome Patagon que descrevia um monstro de um romance hispânico. Alguns subiram, ela inclusive, o Morro dos Dois Condores, pedregosa e íngreme subida com direito a majestosa vista do rio De Las Voltas e as paredes do Fitz Roy e do Cerro Torre, recortadas sobre um céu majestoso e claro, fato não muito comum naquela paisagem. Imponente, o monte é considerado um desafio para os alpinistas de todo mundo por suas paredes de granito. Miúdas borboletas pelo caminho.
Lembrou-se do espartano voo de El Calafate à Ushuaia, da tremenda queda da temperatura, do vento fortíssimo, do ‘’Esqueceram de Mim 2”. Aprendeu a pronunciar ‘’ussuaia’’, já que o ‘h’ é mudo em castelhano e que ela tem o duplo aposto de cidade mais austral do globo e fim do mundo, a Finisterre. (Ela soube que realmente era a cidade de Porto Williams a mais austral, porém Ushuia é a mais conhecida).
Ushuaia, porta de entrada para a Antártida, é uma cidade pitoresca às margens do Canal de Beagle e pertence à Província da Terra do Fogo, a mais jovem da República Argentina, criada em 1990. É a capital da província e está separada do território continental pelo Estreito de Magalhães. Lembrou-se do nome do restaurante do seu hotel –CaPolonio, o mesmo nome do primeiro transatlântico a chegar à cidade de Ushuaia em 1920.
É uma cidade portuária, todos os dias atracam e zarpam navios, movimentando as ruas e o comércio, por ser uma zona franca, ou seja, livre dos impostos. De um lado o mar, com o Farol Les Èclaires, gaivotas a sua volta e do outro, as montanhas (Martial) com picos nevados, falcões e condores. Turistas canadenses, suíços, alemães, chilenos, argentinos e…brasileiros. Mesmo assim, a cidade lhe inspirava um clima de faroeste. Muitos hotéis e restaurantes apropriados para um clima tão inóspito, com temperaturas de 4 graus em média no inverno e 13 no verão e com as quatro estações num dia só. Será por isso que havia sentido tão pouca cordialidade dos patagônios?
Os magros cafés-da-manhã foram compensados pela centolla, um saboroso caranguejo gigante, além dos vinhos patagônicos, da região de Neuquén, pelo cordero patagônico, pelo abadejo con limón, pela truchas e calamares..
No Parque Nacional da Terra do Fogo, respirou o mesmo ar que outrora, índios Yámanas viveram, à beira do Lago Roca e nas costas do Canal Beagle relacionando-se integralmente com o meio ambiente considerado tão difícil. Ainda mais, a Ilha Grande da Terra do Fogo foi ocupada pelo homem há 10.000 mil anos atrás, segundo soube. O passeio teve encontro não-marcado com a bela raposa (zorro colorado), gaviões, castores, ou melhor, apenas os seus diques já que são criaturas difíceis de se mostrarem.
A experiência de andar no Trem do Fim do Mundo, que corta o parque, não achara divertida, apesar de a paisagem encher os olhos. Sentara-se na Maria-Fumaça chamada Camila, hoje elegante locomotora a vapor que contorna o Rio Pipo, a Cascata Macarena, bosques e árvores. O antigo trem de ferro transportava presos na época em que a cidade era conhecida apenas por abrigar uma grande colônia penal, transformada hoje em Museu. O trem refaz o trajeto percorrido pelos prisioneiros, da cidade à floresta onde iam cortar lenha. Os presos eram amarrados com os pés pendurados no vazio, com seus clássicos uniformes listrados, sob o sol, neve, vento, ou chuva. Ainda assim, eles preferiam isso a ficarem no presídio. Era um prêmio ao bom comportamento. Apesar de tudo, era o mais próximo da liberdade! (Arrepio)
O previsto, porém abortado passeio pelo Canal Beagle (nome emprestado do navio inglês que transportou o naturalista Charles Darwin pela região) devido aos fortes ventos, desencadeou nela ímpetos consumistas de última hora, afinal, agasalhos de inverno para os netos é que não faltavam para comprar.
Preferia rememorar cada detalhe do passeio de catamarã ao Glaciar Upsala, o maior de todo o Parque Nacional dos Glaciares com seus imensos icebergs azuis e brilhantes alguns lembrando diamantes. Deve o seu nome a cidade sueca de Upsala, cuja Universidade patrocinou os primeiros estudos sobre glaciologia naquela área. A altura de suas paredes oscila de 60 a 80 metros com superfície de 595 km 2 de neve feito gigantesco chantily derramado caprichosamente sobre as montanhas.
Na baía Onelli, a caminhada pelo bosque andino patagônico terminou na lagoa Onelli repleta de pequenos icebergs que chegavam à praia de pedras. Ela pode até segurar um pedaço de gelo feito cristal pescado no lago e posar para a tradicional foto de álbum.
Com as falsas faias deu-lhe a impressão de caminhar no cenário do ”Senhor dos Anéis”, de árvores andantes e falantes. Todas recobertas de liquens (as “barbas-de-velho”), algumas com buracos feitos pelos pica-paus, enfim, paisagem cinematográfica.
De Ushuaia à Buenos Aires, um voo tranqüilo de volta. O magnífico pôr-do-sol sinalizava o ocaso de mais uma aventura…
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