A calça era a de sempre, remendada, arregaçada nas canelas e substituindo o cinto uma tira de couro curtido de um bezerro morto ano passado - todas as secas morriam alguns - a camisa assim um trapo, já sem os botões, deixando transparecer seu peito nu caboclo, cicatrizado dos arranhões do mato, das espinhadas, das chifradas, algumas ainda abertas, os braços esfolados, as mãos que calo só.
Os sofridos pés, que se imagine, quase já nos cascos, de tanto andar descalço, pisar em torrões, os pés nunca tinham visto uma bota, os olhos sim: as botas do patrão, aquelas lustradas de cano-longo, quando ele montava seu cavalo indo pra cidade. E ele ficava admirando o patrão ir, depois de dar as ordens. O que importava, o patrão era ele.
Nas costas a enxada, às vezes a foice, senão o machado. O sol atravessando as abas destroçadas do velho chapéu de palha. Enfiada na cintura a lima já muito no usual; a tiracolo o embornal com alguma coisa de comer, o simplório, angu, arroz, refogado de abóbora, pimenta malagueta curtida, para dar gosto; às vezes o feijão; carne, só no sábado, quando ia à cidade buscar uma cabeça de boi que encomendava, de praxe, ao açougueiro.
Vinha com aquilo na cabeça, dentro de um saco-branco, o sangue escorrendo pelo seu pescoço, mas ainda assim feliz, os meninos estavam em casa, esperando; a mulher já fizera o fogo numa trempe à beira do terreiro, esperando...
Os dentes. Ainda tinha algum, para sorrir; isto é que era o mais admirável, o sorriso, a gargalhada solta, quando encontrava alguém pela estrada. Não tinha nada a reclamar, somente exaltava-se, vivo, alegre, contando lorotas, acontecimentos, indo ou voltando, como se nunca cansasse do eito: da capina, do roçado, da derrubada, da pobreza.
Dinheiro era um minguado, bastava pras poucas coisas de comer da semana, cabiam num picuá: o fubá, o arroz de terceira, a farinha, o sal, junto vinha a garrafa de pinga ardida. Tomava um gole todos os dias, antes da janta, quando tinha janta, ou mesmo para anestesiar a dor de dente, ou para molhar o algodão e tapar as cáries doídas da mulher e dos meninos.
Os meninos por ali, brincando no terreiro; o mais novo ainda sem as calças; parecia um indiozinho, um leitozinho, correndo pra lá pra cá, o pintinho solto; brincava com um coité. Os dois mais velhos puxavam o calção maior que eles, que ganharam de alguém. Brincavam de boi de sabugo. O cão, magro e manco, deitado numa cava, no chão; ele mesmo fizera para se escapar das moscas. Escurecia. O inhambu piava no cafundó, rumorejando por lá.
No céu, a lua; a maioria das vezes, somente as estrelas e algum vaga-lume vagalumeando por ali. Uma batata, que cavoucara nas leiras do quintal, assava no borralho. Descascava no momento, uma cana; vez em quando os meninos vinham pegar os gomos. A mulher vinha e sentava-se perto; nunca tinha visto ela sorrir, mas tampouco chorar: encarava a vida de frente, com dignidade.
A vida devia de ser assim mesmo, nos remendos: eram da roça e pobres!
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